O instinto do tempo

Autor de três romances que transcorrem em um dia, Cristovão Tezza revela que seu próximo livro segue essa mesma estrutura temporal – já uma marca de sua obra. Nada, contudo, que tenha sido planejado – e nada que seja definitivo

Guilherme Pupo/Reprodução

Autor de três romances que transcorrem em um único dia – O Fotógrafo (2004), Um Erro Emocional (2010) e O Professor(2014), Cristovão Tezza revela que seu próximo livro também seguirá a mesma unidade de tempo. “Essa estrutura temporal acabou se revelando a minha marca de escritor”, diz ele, ressaltando que não houve nenhum planejamento, nenhuma racionalização teórica aí – talvez tenha derivado, especula, de sua experiência no teatro, quando jovem. Não planejada, e também não definitiva: “Nada impede que mais adiante eu procure outras formas. Para quem escreve, as coisas se fazem muito mais por instinto”.

Na entrevista que se segue, esse catarinense radicado desde a infância na literária Curitiba, multipremiado e traduzido em vários países, fala também de seu processo de criação, da importância do romance O Filho Eterno (2015) em sua trajetória, da condição atual e do futuro da literatura. “O escritor não deve se preocupar muito com a inovação por si mesma”, afirma, “ele deve é correr atrás de sua própria voz e linguagem. Do ponto de vista composicional, o estoque de novidades, por assim dizer, nunca é amplo – não há nada de muito novo sob o céu também no mundo da literatura.”

Qual é a importância do tempo e ritmo em uma obra literária em prosa?

O tempo é tudo, na vida e na literatura. Na vida, parece que só percebemos isso intensamente depois dos 60 anos… Na prosa literária, é a chave desde o primeiro texto. O ritmo é especialmente importante na narrativa longa, na medida em que você não pode perder a tensão, mesmo nos momentos aparentemente mais relaxados, ou de “respiro” para o leitor. Mas acho que não há uma regra geral. Cada escritor tem de descobrir a sua própria percepção do tempo, em que tempo ele vai desenvolver a concentração dramática do que ele conta. Na minha literatura, acho que a concepção do tempo derivou-se quase que diretamente da minha experiência com o teatro, quando jovem. Eu comecei escrevendo para o teatro, trabalhando em teatro, e isso me marcou. O romance Trapo(1988), por exemplo, é quase que uma peça de teatro, o que eu percebi na adaptação que foi feita para o palco. Em vários momentos, eu sentia a célebre unidade de tempo, espaço e ação. No romance, esta unidade ainda era bastante exteriorizada, inteira “para fora”, exatamente como no teatro. Na minha literatura subsequente, cada vez mais esta unidade simulada foi se interiorizando, tornando-se íntima, e ganhando aí uma imensa liberdade de ação – apenas pensando, estamos em toda parte o tempo todo, mas só a literatura consegue dar conta plenamente deste mundo secreto. O teatro precisa desesperadamente torná-lo visível, concreto, físico.

Em O Fotógrafo, a ideia de uma trama em um dia existia antes da história propriamente, ou foi o contrário – a multiplicidade de personagens naquelas circunstâncias se encaixava melhor nesse tipo de narrativa?

Apesar de eu ter uma boa experiência como crítico literário, ou como ensaísta da área, o que exige sempre uma razoável base teórica e racionalizante da literatura, como ficcionista esta face da minha cabeça como que desaparece. Quando constituo um “narrador” – escrever ficção é criar um narrador –, o crítico literário, o ensaísta das formas da linguagem, desaparece completamente. Bem, você não se livra da própria formação, mas este lado racionalizante deixa de atuar, vai para as sombras. Escrever ficção é sempre um tiro no escuro. Assim, a estrutura de O Fotógrafo aconteceu da mesma forma que acontece com todos os meus livros. Tenho uma ideia inicial, uma “imagem inaugural”, digamos assim; em seguida, penso numa trama qualquer, e imagino um final; finalmente, chego a uma primeira frase, que dará o tom narrativo. Começando a escrever, toda esta moldura inicial de segurança se evapora rapidamente, e o texto novo começa a exigir seu próprio caminho. N’O Fotógrafo foi assim. Cena inicial: um fotógrafo numa esquina aguardando alguém para fotografar secretamente – é quase uma pauta de um filme B, um chavão narrativo. Dali especulei quem seria a vítima (uma jovem modelo – mais um detalhe B). Imaginei vagamente que depois de um tempo (dois, três meses) fotografando-a em segredo, eles iriam se encontrar, e pintaria algum clima. Isso eu deixei em aberto. Bem, o roteiro era basicamente nada, mas senti que seria o suficiente para começar. Bastou a primeira frase que me ocorreu – “A solidão é a forma discreta do ressentimento” – para o livro tomar um rumo completamente diferente. O texto entrou numa camada existencial reflexiva que colocou o livro num outro gênero, e passou a fazer exigências estruturais completamente inesperadas. Outros personagens surgiram, e senti necessidade de manter uma intensa unidade de tempo e de espaço. Tudo vai se passar em um único dia. Engraçado que muitos leitores me dizem que O Fotógrafo daria um ótimo filme. Parece que sim: nós lemos o romance “vendo” cada cena. Mas não funcionaria no cinema – os personagens falam pouquíssimo; todo o livro se faz na cabeça das pessoas. Isso não dá filme. Mas dá literatura.

Ulisses, de James Joyce, foi uma inspiração? Ou nada a ver?

Ao começar a escrever, nem me passou pela cabeça o romance de Joyce. Eu tinha em mente uma espécie de “romance policial” – gênero que me agrada muito, mas no qual sempre me revelo incompetente. Meus livros sempre se transformam em outra coisa. A estrutura de O Fotógrafo se criou por instinto. Mas há um fator extraliterário que é curioso, e alguém até pode dizer que inconscientemente me influenciou. Na época em que eu escrevia o livro, meu amigo e vizinho Caetano W. Galindo estava já trabalhando na sua maravilhosa tradução de Ulisses e me mandava os capítulos como “becape”, naqueles tempos de informática insegura. Foi um grande privilégio – eu ia lendo sua belíssima tradução em primeiríssima mão, e claro que conversávamos muito. Engraçado que, conscientemente, nunca me caiu a ficha que o livro que estava escrevendo também se passava em 24 horas… Mas, exceto por esse detalhe, não tem nada a ver.

Você me disse que seu próximo livro também se passará em um único dia. É um “estilo” que você acabou desenvolvendo?

Depois de O Fotógrafo, escrevi O Filho Eterno, um livro que teve um grande impacto para mim, em todos os sentidos. Primeiro, por eu tratar de um tema absolutamente pessoal, fazendo dele um romance – minha experiência como pai de uma criança com síndrome de Down. Segundo, pelo inesperado sucesso do livro. Graças a ele, saí da Universidade Federal do Paraná (onde eu teria de ficar até os 70 anos para me aposentar, porque comecei tarde a trabalhar com carteira assinada…) e me arrisquei a viver à solta neste mundo selvagem. E, finalmente, porque neste livro o tratamento narrativo do tempo é fundamental. Nele eu amadureci alguns traços estilísticos, ou sintáticos mesmo, de jogo e fusão de tempos, que acabariam se tornando minha marca nos livros seguintes. Com Um Erro Emocional eu levei esse traço quase que ao limite. O livro inteiro é um encontro da personagem Beatriz com o escritor Donetti (que já haviam aparecido nos meus contos e vão reaparecer em A Tradutora) durante duas horas, e dá a sensação ao leitor de que o romance se passa em “tempo real”. Claro que é só impressão: a literatura “representa”. Há uma intensa unidade de espaço; mas a unidade de tempo é enganadora — tanto Beatriz como Donetti viajam no tempo enquanto conversam, e o passado de ambos vai aparecendo em cada página do instante presente. No romance seguinte – que considero meu melhor livro –, O Professor, o tempo dramático, por assim dizer, é apenas uma manhã: o personagem acorda, toma banho, toma café, e sai para receber uma homenagem. Mas, na cabeça dele, toda a sua vida é refeita e repensada. Depois, publiquei A Tradutora(mais uma vez com as personagens Beatriz e Donetti), em que ação dura três dias, mas há uma intensa fusão dos tempos narrativos. E atualmente, o novo romance que estou escrevendo também tem unidade de tempo: um único dia. Mas essa unidade, como eu disse, revela-se falsa, apenas uma moldura. É uma vida inteira que está ali. Respondendo à sua pergunta: sim, essa estrutura temporal acabou se revelando a minha marca de escritor. Mas nada impede que mais adiante eu procure outras formas. Para quem escreve, as coisas se fazem muito mais por instinto do que por planejamento.

É possível uma prosa ágil numa narrativa em que o tempo cronológico passa mais devagar?

O conceito de “prosa ágil” é demasiado fluido. Poderia dizer que é mais provável uma “prosa densa”, quando o tempo se detém. Dois exemplos clássicos: Proust, naturalmente, o arquétipo da memória à solta num instante concreto. Mas lembro de Faulkner – ele era especialista em se concentrar num único instante e desbravá-lo circular e reflexivamente, o que sempre me fascinou.

No nosso mundo veloz, do fast food à informação imediata, há espaço para uma “slow literatura”?

A literatura não pode nem de longe pensar em competir com a cultura do fast food – é claro que vai perder. Ela não pode se pensar como um produto adaptável ao meio ambiente. Ela é, por natureza, inadaptada, a expressão única de um olhar. Não faz mal que seja para poucos. É por isso que eu vejo no projeto de escrever – um trabalho que não é solicitado por ninguém e no qual nos metemos por nossa conta e risco, sem garantia de coisa nenhuma, sequer de um dia ser lido – uma dimensão ética, pessoal, intransferível. A pergunta a fazer a quem se propõe escrever é: você vai mesmo encarar essa viagem?

A narrativa serial, dos folhetins literários aos novos seriados de TV, é ainda irresistível?

As séries revitalizaram o cinema, que passou a ser uma arte consumida predominantemente em casa. Mas não só por isso – renovaram também a linguagem do cinema, com uma liberdade que o grande cinema parece que não consegue mais se dar ao luxo por excesso de dinheiro em risco. Mas não há propriamente nada de novo na estrutura seriada, uma criação romanesca do século 19, vinculada diretamente à expansão da imprensa, da urbanização e do aumento brutal do público leitor. Gênios como Dostoiévski e Balzac escreviam folhetins. Sim, é irresistível principalmente pelo suspense, uma categoria literária moderna; o suspense pressupõe um mundo que não está pronto, contingente, em que pode acontecer qualquer coisa. A narrativa épica e a narrativa trágica clássicas tratam de um mundo substancialmente circular, pronto e acabado, que apenas repete a si mesmo. O suspense é o mundo da liberdade do indivíduo.

A literatura contemporânea ainda está muito dependente dessas estruturas narrativas do romance do século 19?

Seria uma limitação absurda reduzir as estruturas narrativas da linguagem – que remontam aos tempos da Bíblia – a duas ou três formas composicionais populares no século 19. A narração – alguém que conta alguma coisa a alguém – é parte integrante da própria aquisição da linguagem. É impossível pensar numa condição humana sem narrativa. Pensando agora na sua pergunta: o século 19 foi a era de ouro do romance não por sua forma composicional intrínseca (que não foi inventada no século 19 e nem desapareceu depois dele), mas pela confluência extraordinária de condições simultâneas: urbanização intensa, criação da classe média leitora, explosão da imprensa, impulso científico, ampliação do lazer – tudo isso num mundo ainda sem televisão e cinema. Bem, o mundo mudou, e a literatura foi perdendo década a década o protagonismo que tinha. E daí? A literatura também não tinha nenhum protagonismo ao longo da Idade Média, e foram mil anos. Mais tarde, a literatura era basicamente restrita à nobreza desocupada. Formas romanescas existiram desde sempre — leia-se Satiricon, de Petrônio, por exemplo, que tem dois mil anos. Enfim, chegando à pergunta: em muitos aspectos, o romance contemporâneo é parente apenas longínquo do romance típico do século 19. Claro, existe uma vasta produção de cultura de massa que mantém basicamente a estrutura romanesca convencional (que é sempre muito forte), mas a literatura mais refinada (ou a literatura “literária”, como dizem os agentes literários no exterior) já criou formas composicionais que respondem mais diretamente à cabeça e à linguagem do cidadão do século 21.

Quais as principais inovações narrativas recentes você aponta?

Do ponto de vista sintático, que diz respeito à estrutura da prosa, a última grande inovação formal foi o chamado “fluxo de consciência”, ou, tecnicamente, “discurso indireto livre”, que começou a surgir esparsamente no século 19 e foi sacramentado de vez em Ulisses, de James Joyce. É um recurso que funde, sintaticamente, na mesma frase, primeira e terceira pessoas, quebrando a “ditadura” de um único ponto de vista. É interessante observar que esse recurso surgiu justamente para dar conta da cabeça “multifacetada” que surgia no amanhecer do século 20; é uma espécie de cubismo da sintaxe. É um recurso que faz sentido em função de uma específica representação do personagem ou de um momento narrativo, e não uma “tecnologia” narrativa neutra que se pode usar a torto e a direito. A fusão dos tempos verbais (a língua portuguesa é especialmente rica nessa área) é outro recurso original para dar conta da “cultura da simultaneidade” que vivemos hoje. Mas penso que o escritor não deve se preocupar muito com a inovação por si mesma – ele deve é correr atrás de sua própria voz e linguagem. Um bom narrador é sempre único. Do ponto de vista composicional, o estoque de novidades, por assim dizer, nunca é amplo – não há nada de muito novo sob o céu também no mundo da literatura. Pode-se começar pelo começo e terminar pelo fim, ou começar pelo fim e terminar pelo começo: de qualquer forma, o tempo da vida só terá uma direção.

Bravo!, agosto de 2017
© Almir de Freitas