A ausência e suas vozes

Na Trilogia do Adeus, João Anzanello Carrascoza cria uma saga polifônica familiar partindo do romance Caderno de um Ausente, em que um pai cinquentão escreve uma longa carta endereçada à filha no futuro

Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil 

Começou em 2014, quando João Anzanello Carrascoza publicou Caderno de um Ausente — romance epistolar em que um pai, João, escreve uma longa carta para a filha recém-nascida, Bia. Já na casa dos 50, o pai temporão deixa o registro para o momento em que, num futuro não muito distante, ele não já estiver presente na vida dela. “Vens com esta marca, de minha ausência, a envolver inteiramente a tua vida”, escreve ele logo no início.

Agora, o romance passa a integrar uma série em que a marca da ausência ganha novas vozes, outros testemunhos. Na Trilogia do Adeus, a ser lançada nesta sexta-feira, entram em cena os romances Menina Escrevendo ao Pai (a própria Bia, já crescida) e A Pele da Terra (Mateus, o meio-irmão, bem mais velho, de Bia). Juntos, os romances criam uma espécie de delicada saga polifônica, em que personagens e tempos, marcados pela ausência fundamental que os guia, revelam laços familiares tão fortes quanto precários nos seus desencontros.

Na entrevista que se segue, João Carrascosa fala sobre a concepção da trilogia, as relações familiares que marcam sua obra, o valor do silêncio e da simplicidade — esta última, “tão complexa, na vida e na ficção, que parece ser mesmo só simplicidade”.

Quando você escreveu Caderno de um Ausente já havia a ideia de fazer uma trilogia com narradores distintos?

Não, meu projeto inicial era apenas um romance no qual um homem, que se torna pai em idade já avançada, põe-se a escrever uma espécie de legado existencial para a filha então recém-nascida. Esmaga-o a certeza de que, no futuro, ele estará ausente de parte essencial da vida dela. Alguns meses depois de publicar o Caderno de um Ausente, senti que a voz da filha vinha aos poucos se pronunciando e escrevi o que seria o relato do tempo de convivência dela com o pai, originando assim o segundo volume, Menina Escrevendo com Pai.Na sequência, como havia outro filho do narrador do primeiro livro, um meio-irmão de Beatriz, protagonista do segundo romance, percebi que era necessário ampliar a história familiar com a narrativa de Mateus em A Pele da Terra. A ideia da trilogia foi, portanto, fruto de um processo vagaroso, e contundente, de expansão de um núcleo ficcional, revelado só depois da escrita do primeiro volume.

A família é um tema constante em sua obra. Por quê?

Os temas literários não são como grãos distintos que aparecem numa bandeja a nossa frente e escolhemos esse ou aquele por algum motivo. São grãos que constituem nosso ser — e o meu tem na família, espaço onde primeiramente nos deparamos com o outro, a sua espinha dorsal. Na família é que aprendemos a tecer os vínculos afetivos, a respeitar a alteridade, a desafiar ou não o poder, a pactuar as dores e as alegrias.

Você parte de sua experiência pessoal como pai para construir essa grande ficção familiar. Quando um episódio particular ganha valor universal?

Um escritor pode elaborar sua obra se valendo de poucos ou de muitos fatos que ele viveu ou assistiu, transfigurando-os com maior ou menor verossimilhança. Mas não pode fazê-lo sem explorar todas as suas experiências humanas, se quer que a sua ficção tenha potência. Qualquer episódio particular, mesmo aparentemente o mais insignificante, é capaz de alcançar valor universal — desde que seja evocado com a força visceral da linguagem.

Os três romances reúnem várias vozes, em tempos diferentes. Qual a importância na sua obra desses planos narrativos distintos? Por quê?

Porque cada protagonista viveu em uma estação da vida, que não é a mesma dos demais, o seu momento de lidar com uma despedida definitiva. Não são três versões de uma mesma época, de um tempo vivido por membros de uma família (pai, filha e filho). Mas, sim, a versão de cada um deles do convívio (único e singular) com os demais até a inevitável hora de um adeus.

Nos romances, as narrativas são pontuadas por lacunas — traço, pontos ou setas. Qual função que você pensou para cada um deles?

Enquanto escrevia o Caderno de um Ausente, percebi, logo nas primeiras páginas, que o narrador devia deixar traços correspondentes a espaços vazios, ou, literalmente, à própria ausência que ia, aos poucos, se alojando no enredo. Pensei, mais tarde, com a estímulo da editora Luara França, da Alfaguara, que se esse grafismo expressivo do primeiro livro havia se tornado parte da história, seria importante também encontrar algo similar para os outros dois romances da trilogia. Então, a fim de acentuar a vigorosa ligação entre filha e pai, ou seja mais a presença dele do que a sua ausência, em Menina Escrevendo com Pai, optamos por inserir super-hífens. E, em A Pele da Terra, usamos a seta em trechos que apontam a máxima aproximação entre os personagens, uma vez que a trama se desenvolve durante uma peregrinação na qual Mateus e seu filho são orientados pelas setas do caminho.

Assim como a ausência é sentida em toda a trilogia, podemos dizer que o silêncio — sugerido pelas lacunas — é uma forma de narrativa?

Sim. Embora a ausência esteja mais enfatizada no primeiro livro, ela atravessa os demais volumes, pois o silêncio não está apenas ao redor de tudo o que é dito, mas no próprio dizer, que não pode em si dizer tudo ao mesmo tempo.

Qual a importância da simplicidade na ficção em prosa?

A mesma que ela tem em nossa vida. A simplicidade, qualquer que seja, na vida ou na ficção, é tão complexa que, aos nossos olhos, parece mesmo ser só simplicidade.

Bravo!, março de 2017
© Almir de Freitas