Thriller de Kucinski só diverte quem viveu anos 90 na USP

Alice, Bernardo Kucinski. Rocco

Associar a USP a “caso de polícia” é coisa que, diante do noticiário sobre a atual crise na universidade, causa zero estranheza. O que não significa que não possa haver outro sentido nessa associação.

Apresentado como romance policial, “Alice”, de Bernardo Kucinski, coloca no campus o delegado Magno, investigando o caso da professora Alice Nakamura, encontrada morta em sua sala no Instituto de Ciências Físicas.

Ao lado do corpo, com claros, mas confusos sinais de envenenamento, o delegado acha a primeira pista: um P rabiscado a sangue num papel pela própria vítima.

Seguem-se os suspeitos. No âmbito acadêmico-político, temos Rogério, orientando atrasado com a qualificação do doutorado; Akira, ambicioso chefe do departamento de Física Nuclear; Peter Gallup, americano (agente da CIA?) de olho na pesquisa de Alice.

Na seara pessoal-passional estão o venal e mulherengo almoxarife Bruno; o engenheiro de telescópios Percival, amante secreto da vítima, e sua ex-namorada, a ciumenta professora Bárbara. Ou, ainda, algum parente interessado numa herança quicando na área.

A todos esses personagens não faltariam motivos ou oportunidades para cometer o crime. Colocadas todas as peças no tabuleiro, a trama seguiria para o jogo, clássico, de revelar e ocultar para o leitor, em doses medidas, as pistas sobre o culpado.

Acontece que o autor —dono de todos os álibis— sempre possui também suas motivações. Graduado no prédio da Física, Kucinski tem contas a acertar, e não faz nenhum mistério delas em “Alice”.

Para solucionar o caso, Magno conta com a ajuda de um professor cassado pela ditadura, o genial e velho comunista Abrahão Zimmerwald, em tudo inspirado no físico Mário Schenberg.

Estamos no início dos anos 1990 —longe ainda da atual derrocada da universidade em meio a má gestão, corporativismo exacerbado e politicagem sindical. Mas mazelas uspianas, boas de colocar numa história, nunca faltaram —de fraude a promiscuidade nas notas de rodapé, entre outros suspeitos habituais.

CONTAMINAÇÃO

E é dessa forma que, partindo de uma narrativa policial clássica, Kucinski retorna ao sentido mais corriqueiro de “caso de polícia”.

Além de detetive, Zimmerwald é a voz a apontar os crimes do programa nuclear brasileiro; insuspeita como ele, a professora Heloíza fala sobre o descalabro da produção científica na universidade.

Tudo certo, tudo justo, mas como empacotar tudo? Não é recurso novo, nem necessariamente mau, usar um gênero literário como disfarce de outro. Mas é, sim, coisa de engenharia complicada.

Contaminado de realismo prosaico, com um narrador não muito adequado a operar nessa fronteira, o romance acaba permitindo, por exemplo, que o leitor exclua os suspeitos mais facilmente que a dupla Magno-Zimmerwald.

Consegue também, muito possivelmente, matar as charadas de “Alice”. Para quem viveu aqueles anos na universidade, não deixa de ser um exercício divertido. Ainda que seja, essencialmente, uma diversão entre pares.

Folha de S.Paulo, setembro de 2014
© Almir de Freitas