Tradição reinventada

Em Desejo e Reparação, o diretor Joe Wright faz um bom filme a partir de um clássico atual — o escritor Ian McEwan

A trajetória de Desejo e Reparação em festivais impressiona: são mais de 50 indicações a prêmios, sete delas para o Oscar, 14 para o Bafta — o maior do cinema britânico — e sete para o Globo de Ouro, no qual se saiu vencedor em duas categorias, incluindo Melhor Filme. Nada mau para um diretor jovem como o londrino Joe Wright, que, aos 35 anos, só não pode ser considerado um novato por já ter no currículo quatro indicações ao Oscar por Orgulho e Preconceito (2005), bela adaptação do romance de Jane Austen (1775-1817). Aliás, a familiaridade de Wright com o universo da escritora britânica dá uma pista — ainda que indireta — para se compreender o êxito e as possíveis limitações da adaptação do livro Reparação, de Ian McEwan.

Referência clássica da literatura inglesa, a obra de Austen é, justamente, o contraponto do livro de McEwan — a começar pela epígrafe, um trecho de A Abadia de Northanger (1818), romance póstumo da autora. Nele, a protagonista é Catherine, uma leitora de romances góticos que fantasia intrigas e crimes durante uma estada na abadia do título, um ambiente bem diferente do mundo alienado da aristocracia em que vivia. Nessa sátira realista ao gótico, o parentesco da personagem com a Briony de Reparação, cujas fantasias literárias levam à tragédia o casal Cecilia e Robbie, é evidente.

Briony não é, contudo, mera paródia de Catherine. Até a publicação de Reparação, em 2001, McEwan era tido como um escritor de excelente técnica narrativa, mas de repertório limitado. Em (ótimos) livros como Jardim de Cimento (1993), Amor para Sempre (1997) e Amsterdam (1999), os temas giravam em torno de situações grotescas — o que rendeu ao autor o apelido de “McCabro” no meio literário inglês. Com Reparação, uma espécie de “romance sobre o romance”, surpreendeu a todos. Ao contar a história da menina que constrói uma ficção para reparar o mal que causou na vida real, o escritor “divide” a autoria com sua personagem, num cenário que lhe era atípico, a Inglaterra do início do século 20. E, assim, reafirma seu virtuosismo, combinando técnicas contemporâneas — suas — com as mais conservadoras — de Briony ou, no limite, a própria Jane Austen. Ao mimetizar a tradição, o ex-McCabro conseguiu a proeza de inovar, escrevendo seu melhor livro.

CINEMÃO

Tem-se dito que Desejo e Reparação é um filme fiel ao livro — e é mesmo. Mas é preciso acrescentar que a essência dessa fidelidade foi a transposição desse jogo de narrativas para o cinema. As sequências mais claras disso são aquelas que mostram dois pontos de vista sobre a mesma cena. Uma referência ao papel — e às limitações — do narrador onisciente. Uma dessas cenas é a da fonte no jardim, quando Cecilia se despe diante de Robbie. A outra é a da biblioteca, quando Briony descobre os dois fazendo sexo. Tanto no livro como no filme, essas cenas contam com duas narrativas, uma “realista” e outra que reproduz a imaginação de Briony — e Wright não precisa de papel e caneta, faz isso apenas com a câmera.

Os diferentes níveis de narrativa do livro também envolvem diferentes ritmos — é notável como McEwan, por exemplo, gasta mais de 200 páginas para narrar os acontecimentos de apenas um dia, no início do romance, e como, em menos de 100, dá conta das desventuras de Robbie até a retirada das tropas britânicas em Dunquerque, na Segunda Guerra Mundial. Joe Wright também capta essa sutileza. O estilo de direção muda ao longo do filme. Inicialmente mais contido, ganha ares de épico à maneira de, por exemplo, Lawrence da Arábia — como se Wright tivesse escolhido ser David Lean por algumas cenas.

Para obter esses efeitos, Wright se valeu da experiência de Orgulho e Preconceito — tanto na condução de uma narrativa mais tradicional, “clássica”, quanto na combinação dessa narrativa com elementos cinematográficos do chamado “cinemão”. Em Desejo e Reparação, figurino, direção de arte e fotografia, por exemplo, são irretocáveis — sem esquecer os numerosos figurantes. Keira Knightley está ótima como Cecilia Tallis, mas é Saoirse Ronan — que parece saída diretamente do livro do McEwan — quem mais impressiona no papel de Briony aos 13 anos. No fim, Vanessa Redgrave faz uma aparição breve, mas espetacular.

Ironicamente, e apesar de toda essa riqueza, a maior virtude do filme pode ser o seu calcanhar-de-aquiles na disputa do Oscar. Ainda que a academia de Hollywood preze o “cinemão”, a oscilação de ritmos e estilos narrativos pode ser entendida como uma falha. A cena na praia de Dunquerque, por exemplo, filmada em um único plano-sequência, tem um certo tom de farsa, destoa do resto — e é necessário que seja assim. Talvez essa incompreensão tenha contado para o fato de Wright não estar entre os indicados a Direção, apesar de Desejo e Reparação estar entre os finalistas em Melhor Filme. De certa maneira, Wright, que vinha de um filme integralmente tradicional, inteiramente “Jane Austen”, paga o preço por ter, a exemplo de Ian McEwan, se reinventado como cineasta.

BRAVO!, fevereiro de 2008
© Almir de Freitas