A imaginação da verdade

Ao empatizar com o protagonista de O Homem Urso, Werner Herzog reflete suas próprias obsessões no documentário

Certa vez, qual um Carlitos no filme Em Busca do Ouro, o cineasta alemão Werner Herzog comeu a sola do próprio sapato para pagar uma aposta. Em outra ocasião, caminhou de Munique a Paris, cumprindo uma promessa religiosa. Para filmar Fitzcarraldo, teimou em arrastar um navio de quase 350 toneladas pela floresta amazônica, numa tarefa que acabou provocando a morte de um dos muitos figurantes. Dez anos antes, em 1972, também na Amazônia, durante as filmagens de Aguirre, A Cólera dos Deuses, ameaçou sair na bala com seu alter ego, o ator Klaus Kinski, que, por sua vez, causava certo tumulto à produção achando-se mais senhor da selva do que o próprio conquistador espanhol em seu delírio em busca do Eldorado.

Pequenas e grandes insanidades como essas sempre atraíram Herzog, que fez questão, aliás, de alardeá-las mundo afora em making offs e documentários. Não é algo a ser ignorado. Combinadas as duas obsessões, o que temos é um diretor que se transforma num quase-personagem de sua própria obra, na qual a estranheza acaba desfazendo os limites entre a ficção e a realidade. E também não surpreende, diante dessa compulsão pelo registro — pessoal, sobretudo —, que Herzog tenha se dedicado nos últimos anos aos documentários. O Homem Urso, exibido no mês passado no festival É Tudo Verdade e que chega agora ao circuito comercial, é uma evidência dessa megalomania que se ajusta a uma concepção de cinema que pode ser tudo, menos convencional.

O filme conta a história do ambientalista norte-americano Timothy Treadwell, que durante 13 anos conviveu desarmado com os ursos-pardos no Parque e Reserva Nacional de Katmai, no Alasca. A partir de 1998, ele passou a gravar em vídeo o comportamento dos animais e sua bem próxima convivência com eles, o que se estendeu até 2003, quando Treadwell e a namorada, Amie Huguenard, foram estraçalhados por um dos ursos — um “mal-encarado”, segundo o piloto do avião que tinha ido buscá-los no fim daquele verão. A história alimentou o noticiário nacional durante certo tempo, provocou alguma polêmica e acabou, como costuma acontecer, sendo esquecida.

URSO COADJUVANTE

Uma ex-namorada de Treadwell, Jewel Palovak, contudo, se dispôs a produzir um filme com o material deixado pelo ambientalista — cerca de cem horas de gravação. Em mãos erradas, a história bem que poderia acabar dando em mais um documentário aborrecido sobre bichos. Num desses lances de sorte do destino, porém, o projeto, que envolvia uma produtora de documentários, a Lions Gate, e o Discovery Channel, acabou chegando às mãos de Herzog. Que logo percebeu que as questões ecológicas tradicionais ou os ursos eram meros coadjuvantes. A estrela ali era Treadwell, personagem involuntário de uma farsa confundida com a realidade. Coisa que o diretor alemão, como se sabe, conhece muito bem.

Tragédia à parte, o que as imagens e os depoimentos de O Homem Urso vão mostrando é que Treadwell tinha, mesmo, um parafuso a menos. E não é apenas aquela loucura básica de ecologistas que saem mundo afora atrás de cobras venenosas ou escolhem passar a vida com gorilas. Nas muitas vezes em que aparece em primeiro plano falando de si mesmo, Treadwell reitera sua condição de ex-alcoólatra e drogado, dizendo que a missão entre os ursos “salvou sua vida”; às vezes eufórico, fala quase que com entusiasmo da sua possível morte (uma obsessão); às vezes deprimido, chora como uma criança ao conversar com uma raposa. Em outros momentos divaga, dizendo coisas sem sentido.

Além do mais, sua causa parece vazia de razão: de acordo com um biólogo local consultado, as estatísticas mostravam que não havia nenhuma ameaça aos ursos da região. E, em tantos outros depoimentos, o que sobressai é sempre uma estranheza suspeita. Herzog arma representações bizarras, ouve tipos esquisitos, aponta histórias mal contadas e até faz insinuações. Somando tudo, o que se desenha é o retrato de um homem que contrapõe seus demônios a uma idealização da natureza, criando uma causa que, no fundo, só dizia respeito a ele mesmo.

MISTERIOSO E EVASIVO

Mas tudo aqui parece muito familiar. E não é absurdo perguntar até que ponto o fascínio do diretor alemão pela loucura e a empatia com a megalomania do Treadwell cineasta (manifesta no próprio filme, contra os “diretores de estúdio”) não acabam por exagerar essa leitura, fazendo com que o ambientalista pareça, digamos, um Herzog do Alasca ou um Klaus Kinski de cara menos enfezada. Se o desequilíbrio emocional de Treadwell é inegável, a sua abordagem — mesmo a mais simpática — deixa dúvidas. E por mais de uma razão.

Em 1999, num esquisito manifesto chamado Declaração de Minnesota, o cineasta bate de frente com o Cinema Verdade, corrente que, em essência, defende a não-intervenção do documentarista diante do que está registrando. Entre frases como “devemos ser gratos ao fato de que o Universo lá fora não conhece o sorriso”, Herzog é taxativo: “(…) o assim chamado Cinema Verdade é destituído de verdade. Ele atinge apenas a verdade superficial, a verdade de quem a conta”.

Alguém poderia ver aí uma senha para a manipulação, mas isso passa muito longe do que está em jogo. Há uma distinção clara entre abraçar cegamente esse conceito de verdade e reivindicar o direito de interpretar os fatos para chegar, como ele diz no manifesto, a um outro nível de verdade — uma “verdade misteriosa e evasiva, que pode ser atingida apenas por meio da fabricação, imaginação ou estilização”. E isso só pode ser feito com a intervenção aberta do autor. Em O Homem Urso, essa concepção é levada ao limite. Em uma narração em off, durante uma longa cena de descontrole de Treadwell, Herzog exibe seu estilo personalista, lembra do episódio Klaus Kinski em Aguirre… e faz seu diagnóstico: “O ator do filme sobrepujou o cineasta. Já vi essa insanidade antes num set de filmagem. Mas Treadwell não é um ator se opondo ao diretor ou ao produtor. Ele combate a própria civilização”.

Além de rejeitar o registro impessoal e superficial, não há em O Homem Urso o jogo irritante, insosso e falso de “apresentar-todos-os-lados-para-o-público-formar-sua-opinião”. Com todas as cartas colocadas na mesa, o espectador pode também, sim, procurar aquela verdade “misteriosa e evasiva” que levou alguém como Timothy Treadwell a querer cruzar a fronteira que separa os homens dos ursos, alimentando o sonho impossível de ser um deles.

BRAVO!, maio de 2006
© Almir de Freitas