A heresia vai ao cinema

Guel Arraes leva a estrutura e a linguagem da televisão para o filme O Auto da Compadecida

Quando escreveu o Auto da Compadecida, em 1955, Ariano Suassuna concebeu uma montagem que aproximasse o teatro moderno do circo, com palco em forma de picadeiro e um palhaço para apresentar ao “distinto público” as histórias incríveis de Chicó e as malandragens de João Grilo no sertão da Paraíba e no além, diante de Deus e do diabo. Quarenta e cinco anos depois, a peça volta a promover, por meio de uma trupe de pernambucanos notáveis, a aproximação de dois gêneros distintos, no que pode ser o mais importante encontro entre televisão e cinema no Brasil.

Com direção de Guel Arraes e adaptação que contou com a participação de João Falcão e Adriana Falcão, estreia, no próximo dia 15, o filme O Auto da Compadecida, com o artigo “o” e algumas outras coisas mais. Além da particularidade de ser uma versão reduzida da microssérie de quatro capítulos exibida pela Rede Globo no início do ano passado, a produção se destaca por levar para o cinema o núcleo de criação que tem o nome do diretor, uma das melhores escolas de teledramaturgia que o país já teve. Não será surpresa, entretanto, se isso despertar a ira dos pregadores de um suposto cinema “independente”, que se arrepiam só de ouvir a palavra televisão, como se ela fosse mesmo a imagem da besta.

Se servir de consolo, diga-se, em primeiro lugar, que não houve nenhuma conspiração nos gabinetes da emissora para “invadir” o território alheio usando seu braço cinematográfico, a Globo Filmes. Simplesmente não existia no início a intenção (ou a tentação) de levar a microssérie ao cinema. Segundo Guel, foi o produtor Daniel Filho quem sugeriu na época a rodagem em 35 mm, apenas para obter uma qualidade superior à do vídeo. “Eu tive a idéia de fazer o filme no meio das gravações e guardei isso comigo. E ia imaginando cenas que poderiam ser cortadas. Foi só depois que o Daniel, que também é da Globo Filmes, topou levar o projeto adiante”, diz.

Em segundo lugar (mas isso talvez não console), a ligação entre televisão e cinema no país, embora incipiente, não chega a ser novidade. Cacá Diegues foi pioneiro ao exibir na Rede Globo, antes de entrar em circuito, Dias Melhores Virão (1990) e, quatro anos depois, ao reunir quatro curtas co-produzidos pela TV Cultura, de São Paulo, no filme Veja Esta Canção. Aliás, nas co-produções, a Cultura também contribuiu financeiramente para vários filmes, entre eles Boleiros (1998), de Ugo Giorgetti, e Dois Córregos (1999), de Carlos Reichenbach, seguindo uma tradição comum há décadas em países europeus. Foi essa parceria que possibilitou, por exemplo, filmes como Ensaio de Orquestra(RAI-Itália), de Federico Fellini, e Trainspotting (Channel Four-Inglaterra), de Danny Boyle.

Mas é preciso dizer (e agora não restará nenhum consolo) que nenhum desses casos se assemelha a O Auto… Concebida e financiada originalmente e apenas por uma emissora de televisão, por profissionais de televisão, a microssérie, vista agora em formato de longa-metragem, aproxima linguagens distintas, revela a formação de quadros técnicos afins e – indo direto ao assunto – abre perspectivas de novas fontes de investimento para a produção cinematográfica. Não seria demais dizer que a experiência de O Auto da Compadecida acena com a possível conciliação de dois gêneros que, embora aparentados, percorreram caminhos diametralmente opostos ao longo das últimas décadas no país.

Enquanto o cinema nacional viveu permanentemente em penúria, ora passando o pires entre os burocratas do Estado, ora batendo à porta da iniciativa privada, os profissionais da televisão não dependeram, para sobreviver, da generosidade exercida com o dinheiro alheio nem do marketing animado pelo incentivo fiscal. A teledramaturgia não só sobreviveu, como também prosperou durante um bom tempo, ofereceu uma alternativa real ao dramalhão mexicano e reuniu as condições objetivas para se transformar numa verdadeira indústria de entretenimento, com todos os custos que isso acarreta. O mais pesado deles, como se sabe, é a ditadura do ibope, mas que não se diferencia tanto, por exemplo, da espada que paira sobre o cinema norte-americano – a bilheteria. Aqui, trata-se de aprender a lidar com o público, ou – para usar um termo mais afinado com as finanças – o mercado. Cheiro de enxofre, mais arrepios.

No Brasil, é evidente que a lógica da competência e da eficiência voltada para o lucro, com todas as perversidades que ela acarreta, é mais familiar à televisão. Mas é verdade também que foi ela quem permitiu as condições necessárias para que profissionais, no sentido exato do termo, pudessem trabalhar com a segurança de quem tem – esta é a dura realidade – a sobrevivência garantida em contrato.

Naturalmente, muita coisa ruim foi produzida, mas houve também coisa muito boa, como, por exemplo, o especial de Walter Avancini baseado no auto de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina, hoje um clássico. Sem querer colocar na balança os prós e os contras – o que seria uma discussão infindável –, não se pode deixar de admitir que esta é uma vantagem da indústria do entretenimento: se no mais das vezes serve ao gosto médio do público (e causa um horror legítimo), acaba abrindo espaço para a aposta em nichos de mercado considerados mais arriscados comercialmente.

Bem ou mal, poucos escritores e dramaturgos escaparam de ser adaptados pelos roteiristas e diretores de Hollywood, que, ao mesmo tempo em que produz lixo como Independence Day e Gladiador, possibilitou filmes como Beleza Americana (outra vantagem: quem não concorda com este pode escolher outro; há vários). Igualmente, podemos dizer que, entre os milhares de horas de novelas cretinas da Globo, surgiu O Auto da Compadecida. Ariano Suassuna reconhece essa realidade: “A televisão e o cinema têm prestado, às vezes, à ficção e à dramaturgia do Brasil, um excelente serviço. E ele poderia ser ainda melhor se confiassem mais no público, cujo bom gosto normalmente é subestimado”.

PROFISSIONALISMO

Guel não pode falar sobre as estratégias de mercado da emissora, mas destaca a tranquilidade que decorre da estrutura profissional da tevê. “Não para fazer um trabalho burocrático”, ressalta, “mas para poder criar com liberdade.” É claro que não é assim para todos. Há sim na televisão os atrasados e os burocratas, cujos parâmetros se limitam aos números da audiência. E existem, no cinema nacional, os que conseguiram fugir a duras penas do amadorismo econômico sem se prender à lógica estreita da bilheteria. Não há oposição condenatória, mas um espaço de intercâmbio que ainda não foi devidamente explorado entre quem tem o que mostrar e o que dizer, seja qual for o veículo.

“Eu vejo O Auto da Compadecida como um produto típico da Globo Filmes”, afirma Guel, que se anima com a perspectiva de parceria entre televisão e cinema. Ele destaca também a proximidade técnica que se conseguiu ao longo dos últimos anos. “O Auto... usa uma equipe técnica que o Daniel (Filho) formou há algum tempo. Sete anos atrás, eu filmei, em 16 mm, O Coronel e o Lobisomem. Eu tive de pedir uma autorização especial, tinha de fazer aquilo dentro do orçamento em vídeo. Tive de apertar o cinto, fazer mais rápido. Quase que não podia fazer. Não é porque era mais caro, é porque a gente não dominava aquela técnica direito, havia uma certa desconfiança. O Daniel quebrou um pouco isso. O custo de O Auto… não foi tão a mais que em vídeo. Isso deixou de ser um tabu na televisão.”

O diretor, coerentemente, descarta migrar para o cinema. Acha que seu lugar é na televisão, onde pode fazer essa aproximação “de dentro”. Suas razões se devem principalmente ao que já foi feito por ele, João Falcão, Pedro Cardoso, Jorge Furtado e vários outros que promoveram nesse veículo, segundo suas palavras, um “minimovimento artístico”. Exatamente porque não trata apenas de técnica, mas também da evolução de uma linguagem que, apesar de específica, mostrou que pode ajustar-se ao formato de longa-metragem, distante anos-luz do teleteatro das primeiras produções tanto da tevê quanto do cinema no Brasil.

Guel defende que o resultado da transposição não ficou artificial, opinião compartilhada por Suassuna, que assistiu ao filme em formato de vídeo no ano passado, no encerramento do Festival de Cinema do Recife. O corte de aproximadamente uma hora (de 2h40 para 1h44) não prejudica a narrativa, mostrando que a adaptação da peça não se diferencia, no essencial, de um trabalho que fosse feito para uma produção cinematográfica, o que inclui cuidados com a cenografia, trilha sonora, figurino e caracterização dos personagens.

E há, principalmente, a elaboração do roteiro. Com o sinal verde de Suassuna, a peça não é apenas reproduzida. A ela foram adicionados enredos e personagens diferentes, numa operação que, enquanto buscava não distorcer o essencial do texto original, o aproximou das necessidades impostas pelo meio audiovisual.

A “chave” para isso, segundo Guel, foi pesquisar histórias medievais e renascentistas que combinavam com o universo nordestino da peça, reelaborando-as. “A gente pesquisou Decameron, histórias medievais, histórias farsescas da Idade Média e as comédias pré-Molière que usavam esses enredos”, diz o diretor, que experimentou fazer as alterações antes de falar com Suassuna. “Liguei para o Ariano Suassuna dizendo o que tinha feito e que tinha aprendido isso com ele mesmo (risos). O Auto da Compadecida é um pouco isso, bebe na fonte popular e recria. E usei enredos de outras peças dele, que muitas vezes são recriações de outras histórias populares. E ele falou: faça como você quiser.”

Uma das consequências dessa “liberdade com método” foi o corte de alguns personagens (o sacristão e o bom frade) e o acréscimo de outros, como Rosinha, que funcionou, segundo Guel, para dar também um lado romântico ao picaresco Chicó. Se alguém acha que a história de amor foi uma concessão ao gosto médio do público, o próprio Suassuna esclarece: “Rosinha veio de outras duas peças minhas, A Pena e a Lei e Torturas de um Coração, onde ela aparece com o nome de Marieta”.

Além disso, a adaptação também foi decisiva para o estilo do diretor não ser escamoteado, e salta aos olhos a agilidade. Assim, logo no início, o filme vai direto para João Grilo e Chicó anunciando a exibição de Paixão de Cristo, o “cabra que enfrentou sozinho os romanos”. Corta, e estão os dois arrumando emprego, João Grilo enrolando o padeiro com sua lógica de Odisseu do agreste. Depois a cachorra da patroa fica doente (o padre benze ou não benze?), morre (o padre enterra ou não enterra em latim?) e segue-se adiante.

Há também diversas cenas que funcionam como esquetes, como aqueles que o público se acostumou a ver em A Comédia da Vida Privada. No texto de Suassuna, fica-se sabendo, numa conversa entre Chicó e Grilo, que Dora, a mulher do padeiro, é infiel. Na televisão (e no cinema), a situação é mostrada por meio de uma sequência humorística, com Dora sucessivamente tirando e colocando a roupa, inventando histórias e escondendo os amantes à medida que eles chegam e repetindo, até a aparição do marido, o mesmo mote: “Sô doida por um homem forte”.

O ritmo acelerado da narrativa é uma das características de Guel Arraes e também, ninguém vai negar, próprio da televisão. Por que o cinema não poderia tirar lições disso também? Se não serve como fórmula a ser imitada, pode servir ao menos para que não fiquemos tanto à mercê de planos “poéticos”, enquadramentos “significativos” e closes “expressivos” cujo único efeito é queimar celulóide. Frequentemente é assim: quem tem dinheiro é quem menos se dá ao luxo de desperdiçá-lo.

Ariano Suassuna só foi ver como a microssérie tinha ficado quando ela foi exibida. “Gostei demais”, diz. E acrescenta: “Gostei tanto que coloco à disposição de Guel outras comédias, como O Santo e a PorcaO Casamento Suspeitoso, caso ele queira fazer com elas seriados semelhantes”.

Fica a sugestão para um Guel Arraes aliviado. “Eu tinha muita expectativa, porque a responsabilidade é muito grande, você pegar uma obra desse tamanho. Eu acho que o Auto… é a peça mais popular do Brasil, talvez seja a única. Ela é montada no interior, por grupos amadores, em escolas de teatro. Na França é assim, você vai assistir a Cyrano de Bergerac e vê que aquele público já viu a peça dez vezes. Eles vão para ver aquela montagem e aquele ator, não para ver qual é a história. É muito legal ter uma peça brasileira assim.”

Aparentemente, é com um fenômeno semelhante a esse que estão contando a Globo Filmes e a Columbia Pictures, que se encarregará de fazer a distribuição de 60 a 70 cópias em quase todo o país. O desafio será maior ainda, já que o público não será formado apenas por aqueles que leram o livro ou assistiram a uma montagem, mas também – e sobretudo – por milhares de telespectadores. Como as bilheterias responderão não se sabe. Guel não arrisca um palpite, mas Suassuna está otimista. “Pelo que tenho ouvido de pessoas que me abordam na rua, estou certo de que pelo menos o público do Recife está ansioso para ver o filme. E, pelo que me dizem, o ambiente é o mesmo nas outras cidades brasileiras: quem viu o seriado na televisão quer rever João Grilo e Chicó.”

BRAVO!, setembro de 2000
© Almir de Freitas