Real grandeza

Biografia de Roberto Carlos traz histórias inéditas sobre a obra  e a intimidade do cantor que mudou a música brasileira

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É provável que poucos tenham se dado conta, mas a bossa nova, um divisor de águas na música brasileira, por um triz não arruina a carreira daquele que viria a ser o maior cantor popular do país. Em 1959, então com 18 anos, o capixaba Roberto Carlos era apenas um crooner de boate apaixonado, como quase todo mundo, pela nova batida do samba. Encantado com a voz do garoto, o produtor Carlos Imperial resolveu adotá-lo e transformá-lo num “novo João Gilberto”. O resultado foi desastroso: enquanto João Gilberto exaltava a desafinação como estilo, Roberto Carlos desafinou feio, de verdade, em seu primeiro LP, na faixa Não É por Mim, bolero de Anísio Silva. Embora poucos tenham ouvido, as portas dos círculos mais badalados do Rio de Janeiro se fecharam. Tudo parecia perdido. Não estava, coisa que hoje, obviamente, se sabe.

São relatos como esses, situados na fronteira entre os (melo) dramas pessoais e a história da música popular brasileira para leigos, que dão corpo à biografia Roberto Carlos em Detalhes, do historiador e jornalista Paulo Cesar de Araújo. Uma combinação que mostra a grandeza artística do Rei e a sua influência nas gerações posteriores, de um modo talvez só comparável justamente à bossa nova, mas de maneiras bem distintas. Na pesquisa, que consumiu dedicação integral por quatro anos e 175 entrevistas, o historiador reúne pela primeira vez informações antes esparsas e algumas inéditas, procurando avançar além das lendas que cercam a vida de um mito — o que, se difícil, é um atrativo a mais.

No que se refere à vida estritamente pessoal, a história mais nebulosa — e que chama mais a atenção — é a do acidente que lhe decepou parte de uma perna na infância. A primeira referência direta a ele foi feita em 1970 numa matéria assinada por Carlos Lacerda, que, cassado pelo regime militar, se virava como jornalista na Manchete. Roberto Carlos ficou furioso, e sempre evita falar do assunto, que volta e meia volta à tona. Não é diferente na biografia, que narra o episódio em detalhes.

Então com 6 anos, Zunga, como Roberto era chamado em Cachoeiro do Itapemirim, sua cidade natal, assistia a um desfile escolar à beira da ferrovia com uma amiga, Fifinha. Quando uma locomotiva se aproximou, uma professora gritou para as crianças saírem dali. Assustado, Roberto caiu nos trilhos e teve a perna direita prensada sob as rodas. Socorrido pelo bancário Renato Spíndola e Castro, Zunga foi levado ao hospital na hora. “Em certo momento, ele apontou para o sapato que estava na perna acidentada e me disse: ’Doutor, cuidado para não sujar muito o meu sapato porque ele é novo’”, conta o médico que o atendeu, Romildo Coelho. Segundo relata Araújo, o procedimento mais comum na época era a amputação acima do joelho, mas Coelho optou por uma técnica mais moderna, abaixo do joelho, entre o “terço médio e o superior da canela”, o que permitiu a Roberto Carlos movimentar o joelho e andar com mais desenvoltura.

Essa história remete ainda a outra, curiosa: conhecido mais tarde por sua devoção, Roberto Carlos só foi batizado em 1964, quando tinha 23 anos. O pai, espírita, e a mãe, católica, resolveram deixar para o filho a decisão sobre qual caminho religioso tomar. Crescido, o Rei fez questão que o padrinho fosse o bancário que o tinha socorrido naquele dia. Mas Renato Spíndola havia se mudado para São Paulo, e Roberto Carlos foi encontrá-lo apenas em 1964, já famoso por sucessos como Splish Splash e Parei na Contramão.

SEXO, DROGAS E ROCK’N’ROLL

O cantor só foi reabrir o caminho para o sucesso quando retomou o caminho do rock, o que o levou a seu “amigo de fé, irmão camarada”, Erasmo Carlos. Os dois já se conheciam antes de Roberto brincar de João Gilberto, do programa Clube do Rock, da TV Tupi. Foi nessa época, de garotos imitando Elvis Presley e Bill Haley, que Erasmo resolveu trocar o sobrenome Esteves — que detestava — por Carlos. Roberto não gostou nada. “Porra, bicho, vai ficar muito Carlos na jogada. Vai ser Carlos pra lá, Carlos pra cá, assim não dá.” A parceria, uma das mais bem-sucedidas em todo o mundo, explodiu em 1965, com Quero que Vá Tudo pro Inferno, feita para a namorada de Roberto Carlos na época, Magda Fonseca. Foi um alvoroço, e a música se tornou um megassucesso.

Por coincidência, a canção seria lançada ao mesmo tempo em que a Record colocava no ar o programa Jovem Guarda, apresentado por Roberto, Erasmo e Wanderléa, uma mineira de Governador Valadares que se destacava por seu cabelo comprido, botas e roupas apertadas. O trio acabou sendo definido depois de muitas idas e vindas, e Erasmo foi cotado mesmo para ser o titular por causa de sua recém-lançada Festa de Arromba, outro grande sucesso.

Quem bolou o programa foi Paulo Machado de Carvalho, que inauguraria uma fase de musicais na TV brasileira, com atrações como O Fino da Bossa e a série de festivais que revelariam e levariam ao estrelato Chico Buarque, Gilberto Gil, Nara Leão, Geraldo Vandré, Elis Regina e Caetano Veloso. A diversidade espelharia um conflito crucial na década, com os nacionalistas protestando contra qualquer coisa que maculasse a “pureza” da música brasileira — bossa nova incluída. Que dirá do iê-iê-iê e de suas guitarras elétricas, usadas muito antes do Tropicalismo.

A ditadura, e o radicalismo da esquerda, naturalmente, não ajudavam. Os mais raivosos eram Elis Regina e o fiscal da Sunab licenciado Geraldo Vandré. “Quem estiver do nosso lado, muito bem; quem não estiver que se cuide”, ameaçou Elis no Teatro da Record em 1967, quando o Fino da Bossa acabou. Não faltou nem mesmo uma passeata em São Paulo “contra a guitarra elétrica”, que se tornou famosa e reuniu gente como Gilberto Gil, Edu Lobo, Jair Rodrigues e a turma do MPB-4. Caetano e Nara não foram. Mas eles também tinham sido contra a jovem guarda. Mais tarde, o atento fiscal da Sunab implicaria com a felicidade e o idioma de Baby (de Caetano), gravada por Gal Costa. Já Elis se renderia ao Rei, gravando Se Você Pensa, em 1969, e As Curvas da Estrada de Santos, em 1970.

No meio disso tudo, a turma do iê-iê-iê vivia em parte como lhe convinha, em parte como a imprensa achava que viviam os roqueiros de cabelo comprido. Araújo observa, contudo, como Roberto era moderado na sua imagem de bad boy, apesar de sua paixão pela velocidade e pelas coisas “imorais, ilegais e que engordam”. Era um estilo bem diferente de Erasmo, o Tremendão. No que se refere a sexo, porém, é fato que o Rei era, segundo vários depoimentos, um “grande mulherengo”. Constantemente assediado pelas fãs, cedeu a várias. Muitas. Com uma delas, Maria Lucia, teve em 1964 seu primeiro filho, Rafael Braga, o que só foi comprovado em um teste de paternidade feito em 1990. Também teve casos famosos, como com Maysa e Sônia Braga. Tudo, sempre fez questão de dizer, antes de casar.

A CONVERSÃO

E foram três casamentos: com Nice, em 1968, Myriam Rios (com quem nunca chegou a casar oficialmente), e Maria Rita, em 1996. Roberto Carlos em Detalhes recolhe, a partir do fim da jovem guarda, os sinais que apontavam a guinada na vida e na carreira do Rei, que começa a adotar uma postura cada vez mais espiritualizada e sentimental. O marco seria Detalhes, que, composta em 1971, se tornou outro megassucesso. Sobre ela, Araújo cita um fato curioso. Em sua biografia sobre o jornalista Tarso de Castro, o também jornalista Tom Cardoso diz que a musa da canção foi a socialite Silvia Amélia, para quem Tarso (o tal cabeludo da letra) dava a maior bola. Araújo diz que a história não procede, mas garante que o Rei, de fato, teve um caso com Silvia.

Todas as mulheres de Roberto tiveram as suas canções. Para Nice, compôs Como É Grande o Meu Amor por Você; para Myrian Rios, Eu Preciso de Você; e uma infinidade para Maria Rita, com destaque para a belíssima Eu te Amo Tanto. De certo modo, voltava ao começo de tudo, quando, num domingo de 1950, Zunga, então com 9 anos, cantou o bolero Amor y Mas Amor, do espanhol Bobby Capó, no programa infantil da rádio ZYL-9, Rádio Cachoeiro. Ao mesmo tempo, contudo, em que resgatava uma tradição dor-de-cotovelo, a carreira de Roberto pós-jovem guarda começava a ganhar dimensões gigantescas, que incluíam megaturnês pelo Brasil e pelo mundo, shows em navios, gravações em vários idiomas — especialmente visando o mercado de língua espanhola. A produção, ainda romântica, degenerou em subprodutos como canções para gordinhas e quarentonas.

Também remete à sua infância a sua crescente devoção. Refletindo o cisma religioso dos pais, aproximou-se primeiro do espiritismo. Frequentemente estava em companhia de Chico Xavier e chegou mesmo a recorrer a médiuns para tentar curar o glaucoma do filho que teve com Nice em 1968, o Dudu Braga, ou Segundinho. Nada disso, naturalmente, era bem-visto pela Igreja Católica. Nos anos 80, contudo, optou pelo catolicismo, o que teve grande impacto em seu repertório, naquilo que Araújo define como “fase apostólica”, que inclui canções como A Guerra dos Meninos e Nossa Senhora.

Estava no auge da popularidade, mas a crítica nunca foi tão dura com o Rei. É fato que houve uma queda abrupta na qualidade da sua produção. Não dá para dizer ao certo, mas não se podem ignorar, dos anos 80 para cá, dois elementos cruciais: as tragédias pessoais pelas quais Roberto passou, além da doença de Segundinho — as mortes de Nice, em 1990, e de Maria Rita, em 1999, esta última especialmente dolorosa.

E há, por fim, os efeitos do Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC), doença que em Roberto se manifesta, entre outras coisas, na exacerbação de algumas superstições combinada com algum misticismo. Foi o que o levou, por exemplo, a banir algumas músicas do seu repertório por causa de palavras, caso de Quero que Vá Tudo pro Inferno. No caso de Além do Horizonte, o verso “se o bem e o mal existem” foi trocado por “se o bem e o bem existem”. Evidentemente, a soma de tudo isso prejudicou sua produção.

O resultado foi que uma geração inteira cresceu tendo ojeriza a Roberto Carlos, tido como esquisito, carola e brega. Mas sua influência continua forte: de um lado, sobre o grande público e, de outro, sobre os músicos, que seguem gravando seus sucessos — de Caetano a Barão Vermelho, de Bethânia aos Titãs, de Gal Costa a Skank. De qualquer forma, goste-se ou não, Roberto é um mito, e dele pode-se dizer, com razoável dose de certeza, que não existe no Brasil ninguém que nunca tenha ouvido uma única música sua. Não é pouca coisa para alguém que um dia, tentando imitar João Gilberto, desafinou.

Leia a entrevista com Paulo Cesar de Araújo

BRAVO!, dezembro de 2006
© Almir de Freitas