A Divina Comédia

“Vi sombras (…) lodosas,/ Desnudas, de face enfurecida.// Não só co’as mãos batiam-se raivosas;/ Peitos, cabeças, pés armas lhes sendo,/ Com dentes laceravam- se espantosas”

Na passagem do século 13 para o 14, a todo-poderosa Florença era um caos político, dividido por sangrentas facções. Potência militar e econômica, a cidade estava no centro dos grandes embates entre Roma e o Sacro Império Romano-Germânico, que disputavam o poder de uma civilização que, longe ainda de ser moderna, já dava mostras de esgarçamento nas suas antigas estruturas medievais. Ao lado da famosa paixão platônica de Dante Alighieri (1265-1321) pela jovem Beatriz, A Divina Comédia é tributária desse mundo conturbado, resultando numa obra que enfeixa, da esfera pública à privada, os extremos a que um homem com o gênio de Dante pode chegar.

Soldado, poeta, gramático e político, esse florentino filho de uma família nobre empobrecida foi um modelo, diríamos, de intelectual engajado. E por isso pagou um preço. Derrotados os gibelinos (que defendiam a supremacia do poder imperial sobre o papal), os guelfos, aliados do papado, acabaram se dividindo em duas facções: os neri, que pregavam a sujeição da cidade a Roma, e os bianqui, que lutavam pela independência de Florença. A esse ultimo grupo filiou-se Dante, que tinha também entre seus planos uma longínqua unificação da Itália. O conflito acabou em 1302 com a vitória dos neri. Dante, que estava fora da cidade, foi proibido de voltar, sob pena de ser queimado vivo. Chamado a “retratar-se”, rejeitou altiva e  furiosamente.

Foi nesse duro período de exílio – que se estendeu até sua morte – que ele escreveu sua obra-prima, reunindo, num sistema incrivelmente engenhoso, erudição, sincera fé cristã, amor extremado e declarado desejo de vingança. Foi assim que, guiado pelo poeta Virgílio, desceu aos nove círculos do Inferno, onde não fez por menos: colocou ali, sofrendo toda sorte de danações, todos os seus inimigos políticos e outros desafetos. Já no pesado Baixo Inferno, na fossa dos simoníacos, encontra, por exemplo, o papa Nicolau III a se queixar, enterrado de cabeça para baixo num buraco em chamas; ou, então, o gibelino Farinata degli Uberti (metido num túmulo a arder no círculo dos hereges) e o nero Morello Malaspina, enroscado com imensas serpentes no “setor” dos ladrões.

Mas nem só de vingança foi construída a Comédia (o “Divina” só foi acrescentado dois séculos mais tarde). O que é notável. Por força do seu sistema (baseado nas esferas ptolomaicas) e das suas convicções, Dante se vê obrigado a também colocar no Inferno aliados, amigos (principalmente no círculo dos “violentos”) e grandes pensadores da Antiguidade. E tudo muda quando ascende ao Paraíso, guiado por Beatriz, numa comovente profissão de amor e de fé cristã que, longe de destoar, dá a medida do caráter gigante de um homem difícil que, para o bem ou para o mal, jogava com as grandes paixões – as leais, as sinceras ou as da alma.

Não à toa, põe no último e pior dos círculos infernais Bruto, Cássio (os assassinos de César) e Judas, mastigados por Lúcifer em pessoa. O recado é claro e moralmente elevado: a traição é o pior dos pecados. Dante sabia disso. E muito bem.

Primeira Leitura, setembro de 2003
© Almir de Freitas