Os ideários socialista e liberal foram particularmente marcados pelos acontecimentos de um curto período: 1830-1848. Mais do que uma época em que foram apeados do poder (ainda que provisoriamente) representantes de um mundo em ruínas, foi também o momento em que se operou uma rara, porque acelerada, transformação do ideário dominante. Pouca coisa escapou dessa época tumultuada e “interessante”, e enxergar esse processo na sua totalidade não é tarefa das mais simples. Aceitar que a ciência, por exemplo, se move na correnteza da política não é difícil. Duro é encontrar os elos que prendem, factualmente, uma à outra, e talvez seja mesmo impossível fazê-lo convincentemente.

De qualquer maneira, por coincidência ou não, foi em 1831 que o incrivelmente jovem Charles Robert Darwin (1809-1882) embarcou no navio britânico H. M. S. Beagle para uma viagem de circunavegação do mundo, passando por lugares que iam da Terra do Fogo, Brasil e Galápagos até as Índias. Cinco anos depois, estava de volta, com muitas anotações na mão e uma grande ideia na cabeça: o evolucionismo por meio da seleção natural. Contudo, o clássico A Origem das Espécies levaria ainda mais duas décadas para ser publicado, em 1859. Por que tanto tempo?

Diferentemente dos muitos incendiários – científicos e políticos – de sua época, Darwin era um homem apegado ao zelo e ao rigor na mesma proporção em que carregava inseguranças, modéstia e uma complexa sensação de culpa. Quando jovem, teve problemas na escola – ruim em idiomas, detestava o ensino clássico. Optou por estudar medicina, mas se deu mal também em anatomia e não suportava ver as cirurgias sem anestesia. Sem saída, tentou ser religioso, ingressando no Christ College, em Cambridge, onde ficou até 1831, quando o Beagle veio salvá-lo.

Sua especialidade, como afirmou, era “observar”, e seu gosto era por colecionar insetos e animais. Mas essa “simplicidade” seguiu sendo uma barreira. Nos anos posteriores à viagem no Beagle, Darwin limitou-se a escrever sobre crustáceos e formações geológicas. Entendia que algo como a teoria da seleção natural precisava de muito mais dados do que possuía para se sustentar – no que estava absolutamente correto, uma vez que inexistiam, na época, os estudos sobre genética. Retirou-se para o campo, onde passou anos atormentado por suas ideias: o homem que daria o golpe final no criacionismo definia-se como o “capelão do diabo” e, a respeito da origem da homem, dizia que falar dela era como “confessar um crime”.

Isso tudo quase lhe custou a primazia na teoria da seleção natural. Em 1858, um naturalista amador chamado Alfred Wallace apresentou a Darwin um esboço em tudo parecido com o que ele tinha formulado havia anos, o que o obrigou a expor suas ideias publicamente. E o fez de um modo notável, numa das histórias mais famosas na ciência. Os dois apresentaram simultaneamente uma dissertação sobre o assunto à Linnaean Society, que analisou a “questão da autoria” e estabeleceu a ascendência de Darwin.

Ainda assim, o mundo teve de esperar mais uma década para ouvir a palavra do angustiado Charles sobre o parentesco do homem com o macaco – assunto sobre o qual muitos pesquisadores já falavam. O barulhento A Descendência do Homem só apareceria em 1871. Ano da Comuna de Paris. Mas – alto lá! – isso é de fato coincidência. O que com certeza não é – e em tudo tem a ver com política – é a forma exemplarmente ética com que Darwin lidou, no âmbito privado, com suas convicções e, publicamente, com seus pares na comunidade científica. Paciente e discretamente, Darwin alimentava com sua própria vida o fogo em que aquele velho mundo ardia.

Primeira Leitura, fevereiro de 2004

© Almir de Freitas


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Charles Darwin

Todos os seres vivos estão expostos a uma rigorosa competição, a luta pela sobrevivência. Nessa luta, qualquer variação (...) contribuirá para a sua preservação (...)”

Jürgen Plasser