Adeus, desilusão!

Novos filmes políticos mudam de tom, deixam para trás a autocomplacência e enfrentam com altivez a dura realidade

Os filmes de temática política sempre existiram, e é quase certo que jamais deixarão de existir. Em que pese o que muitos deles têm de irritante no seu primarismo teórico e/ou formal (é tarefa menos simples do que se imagina falar das injustiças do mundo), a perspectiva não é de todo má: sinal de que, de alguma forma, vai-se resistir às ondas de quem, posando com a maior cara-de-pau-de-boa-vontade, pretende pôr um fim milagroso à diversidade da sociedade e aos conflitos. Essa história já conhecemos – e outra vez não, muito obrigado.

A boa notícia que temos de imediato é que, em produções recentes, nota-se uma mudança, ainda que tímida, no gênero. Já faz tempo que a postura engajada, propositiva (ainda que de genocídios chineses), perdeu terreno para o lamento dos desiludidos, aqueles que investiram suas vidas – leituras, amizades, amores – em favor de uma causa e perderam tudo. Entre quatro paredes, é uma reação mais que compreensível; que tenha rendido alguns filmes, é natural; que esteja chegando ao fim, é um alívio.

O movimento não é muito claro, muito menos uniforme. Filmes como Adeus, Lênin!, do alemão Wolfgang Becker, e As Invasões Bárbaras, do canadense Denys Arcand, ainda mantêm muito desse discurso antigo. Mas começam a se diferenciar no tom com que enfrentam a falência das antigas utopias e o inconformismo com a nova ordem. Não é por acaso que, cada um a sua maneira, são bem-humorados, irônicos, cortantes. Não se diz mais “como éramos ingênuos!”, mas sim “como éramos imbecis!”. A autocomplacência piedosa, chata, sai de cena – ainda que a tragédia não desapareça.

Em Adeus, Lênin!, isso se expressa na história bizarra de Alexander, cuja mãe, uma ativista algo patológica do civismo na Alemanha Oriental, sofre um enfarte e fica em coma exatamente durante o período da Queda do Muro de Berlim. Como sua saúde é frágil, o filho fará de tudo para que ela pense que nada mudou. Precisa desesperadamente achar os extintos picles, café e programas de televisão dos quais a mãe, confinada a um quarto cuidadosamente maquiado, gostava. Enquanto isso, a engrenagem da história segue funcionando: Alexander perde o emprego de técnico de tevê e vai vender parabólica, a irmã para de estudar para vender hambúrgueres, e velhos, obsoletos no novo sistema, vagam pelas ruas ou se embebedam em velhas casas, cercados de pilhas de livros também obsoletos. Mas Alexander não tem tempo para eles, apenas para o mundo fantástico da mãe. Felizmente – para nós, não para ele, que acaba fazendo papel de bobo ao “idealizar o idealismo” dos outros.

Há algo aqui como uma transição entre aquele romantismo melancólico para um realismo duro – mas altivo. O desconforto que provoca é de outra natureza: é mais seco e, no fundo, menos paralisante. Ri-se quando Arcand, em As Invasões Bárbaras, retrata a nacionalização dos hospitais canadenses como um pesadelo de ineficiência, dominado por burocratas estatais e sindicalistas que não passam de bandidos. Mas não se perde “a ternura” quando, em uma cena belíssima, a câmera focaliza as lombadas dos livros que o professor de história (de esquerda) mantinha em sua garçonnière. A cena seguinte – o beijo do “herdeiro”, especializado em operações de swap, com a drogada de Quebec – é simples, simbólica das complexidades que a vida encerra. Diversidade sim, ainda que doída.

Numa outra linha, mas ainda mais realista, está Segunda-Feira ao Sol, do espanhol Fernando León de Aranoa. Sua contundência em mostrar a vida de um grupo de desempregados – vitimados pelas agudas transformações da unificação européia – só é equivalente à delicadeza com que filma o vazio das noites e o despojamento do boteco em que os homens passam seus dias. Ou, finalmente, a estranha tranquilidade do sol que ilumina a enseada, como se o tempo houvesse parado. Mas não parou. Assim como em Adeus, Lênin!, a história segue: nos tempos de globalização, tudo vem de fora – o estaleiro em que trabalhavam será substituído por hotéis de luxo coreanos, e os empregos que existem impõem um limite de idade e exigem conhecimento de informática. É um outro mundo de obsoletos: “Quanto valem 8 mil pesetas?”, pergunta o orgulhoso Santa (Javier Bardem, fabuloso), indignado com a dívida que lhe é cobrada pelo antigo estaleiro, por uma luminária quebrada. “Em euros?”, replica o amigo. “Não, em pesetas, em pesetas.”

Malfeito, contudo, esse realismo cru resvala para o primário. Em Coisas Belas e Sujas, o britânico Stephen Frears perde o eixo ao querer retratar a discriminação, a exploração e a discriminação por que passam os imigrantes ilegais em Londres. Sua história, que envolve ainda tráfico de órgãos, dá um salto para trás, elimina qualquer traço de humor e só pede que o público torça para que os bons vençam os maus. Melhor assistir ao velho grego Costa-Gavras (este sim pulou a fase da desilusão) em Amém, que, ao denunciar a passividade do papa Pio 12 diante das atrocidades do nazismo, ao menos diz a que veio. É engajado, antiquado sim, pronto, e daí?

Mas quem faz feio mesmo, também na linha dos filmes históricos, é o egípcio-canadense Atom Egoyan, com Ararat. Para lembrar o massacre de 1 milhão de armênios pelos turcos em 1915, Egoyan, o “cineasta independente”, recorre à mãe de todos os subterfúgios para evitar parecer com algum engajado qualquer, um desiludido ou, pior, um representante do cinemão comercial: faz um filme dentro do outro, e inventa um diretor postiço para filmar (mal) as cenas de barbárie. Enquanto isso, ele, com todos os álibis à mão, exibe seus conhecimentos de artes plásticas, psicanálise, literatura, história...

No final, Ararat não chega a lugar nenhum. É o exato oposto do melhor que há nos novos e bons filmes de temática política, que sinalizam novas saídas sem ser meramente auto-referencial, sem recorrer aos truques pós-modernos. A altivez que os caracteriza dispensa esse tipo de cinismo, que não deixa de ser, com o sinal da arrogância, também uma forma daquela autocomplacência, daquela desilusão que não serve a nada nem ninguém.

BRAVO!, janeiro de 2004

© Almir de Freitas


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Flavio Escribano