Nestes tempos laicos, teologia e política raramente se cruzam, o que, ressalte-se, é mais do que positivo na vida cotidiana. Como exercício intelectual, contudo, não deixa de ser uma pena, já que grande parte do pensamento ocidental se deve a homens que se dedicaram a pensar as instituições baseadas numa concepção gnóstica da civilização. Se não foram poucos os que descambaram para a intolerância, houve também aqueles que souberam se livrar das amarras do dogmatismo – este, sim, perene até hoje, encoberto por outras roupagens que não a religiosa. Na tradição teológica, o exemplo mais notável é o de Desidério Erasmo (1466?-1536), ou Erasmo de Roterdã, autor de Colóquios e O Elogio da Loucura, este uma obra-prima da sátira, mais comentada do que lida e – não se sabe o que é pior – mais lida do que compreendida.

Descobertas no século
19 por um jovem inglês que escavava em Nínive, as primeiras tábuas de argila (muitas foram localizadas e decifradas mais tarde) contavam a história do monarca Gilgamesh, que, reinando por 126 anos, foi o construtor das grandes muralhas de Uruk, cidade-Estado ao sul de Bagdá. Dois terços deus e um terço humano, sua tragédia é o conflito entre os desejos de uma linhagem, imortal, e da outra, sujeita às dores, às fraquezas e aos padecimentos dos mortais. Em episódios divididos como capítulos,  Gilgamesh encontra seu parceiro de aventuras – o selvagem Enkidu –, com quem faz uma perigosa travessia na floresta em busca da sabedoria e da imortalidade, sempre sob os olhos dos deuses do panteão mesopotâmico.

Mas o que sempre chamou a atenção dos estudiosos – e dos leigos também – é o relato do Dilúvio, em quase tudo similar ao descrito no Gênesis. Em A Epopéia de Gilgamesh, o deus Enlil propõe às outras divindades em conselho o extermínio da raça humana. A razão? Barulho: “O alvoroço dos humanos é intolerável, e o sono já não é mais possível por causa da balbúrdia”.

Mas um dos deuses, Ea, decide poupar Utnapishtim, com quem Gilgamesh se encontra em sua jornada. É o próprio quem relata a história: instruído pelo deus, constrói um barco e leva para ele “a semente de todas as criaturas vivas”. Sete dias depois, veio a chuva e, sete dias depois, cessou. Em meio ao mar infinito, o navio acabou encalhando numa montanha. Também sete dias depois, Utnapishtim soltou uma pomba, que, não encontrando lugar para voltar, retornou; depois, também sem sucesso, uma andorinha; e, por fim, um corvo, que encontrou terra.

A semelhança é evidente, mas não há consenso entre os historiadores se a história do Velho Testamento deriva diretamente da registrada em Gilgamesh. Uma hipótese é que o relato já existia séculos antes, pulverizado em uma dúzia de povos esquecidos. Mas há outra diferença, crucial: se em Gilgamesh Utnapishtim só consegue escapar à catástrofe por causa de uma desavença entre os deuses, no Gênesis a salvação se deve a uma questão ética – basilar do monoteísmo que forjou, numa outra e decisiva etapa, a civilização ocidental que conhecemos.

Mas do nada não se cria nada, e somos todos devedores daquele tempo indefinido entre a lenda e a história, entre a história oral e a escrita, de uma época em que o homem mal havia saído das cavernas. Mais clássico que isso, impossível.

Primeira Leitura, setembro de 2004

© Almir de Freitas


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O Elogio da Loucura

“As pessoas (...) falam muito de mim, e estou a par de todo o mal que se ouve falar da Loucura, mesmo entre os loucos. E no entanto sou eu (...) que alegro os deuses e os homens.”

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