Em março de 1897, os jornais republicanos paulistas fizeram estardalhaço com uma batalha ocorrida no sertão da Bahia, num vilarejo ao norte do Estado chamado Canudos, sobre o qual, até então, poucas notícias havia, a não ser a da existência de um líder messiânico chamado Antônio Conselheiro. Na ocasião, tropas do Exército, em sua terceira expedição, foram humilhadas por jagunços (não era o termo que se usava na época) que supostamente queriam a restauração da monarquia no Brasil. O barulho foi grande. Umbilicalmente ligados ao governo federal, diários como o Comércio de São Paulo e O Estado de S.Paulo apressaram-se em reproduzir a versão oficial do Estado, que, desde a Revolta da Armada (1893), enxergava fantasmas coroados perambulando pelos locais mais improváveis. Ainda que na maior parte das vezes as sublevações não passassem de disputas entre os próprios republicanos.

Era um tempo de radicalismos, é fato, e a imprensa comportava-se como se estivesse em guerra. A informação estava longe de ser prioritária, ou melhor, confundia-se com o publicismo, e, como tal, sua verdade se confundia com a causa defendida. Num desses extremos, estava Euclides da Cunha (1866-1909), republicano de primeira hora e homem de confiança de Floriano Peixoto (1891-1894), mas também uma pessoa culta e, como a história mostrou, jornalista bem informado e de bom senso na “apuração dos fatos” – eis uma expressão um tanto exótica para a época.

Desencadeada a grande campanha contra os supostos monarquistas, Euclides (que também acreditava piamente numa vendeta sertaneja) é enviado como correspondente de O Estado para cobrir “as vitórias da República contra os restauradores”. O que já sabemos é que, com base nesse trabalho de campo – longe dos plantadores de café, construtores de ferrovias e recitadores de Augusto Comte nos quartéis –, Euclides escreveria a sua grande obra, Os Sertões, cuja versão final completará um século em dezembro deste ano.

Obra magnífica – síntese da literatura clássica portuguesa mesclada com o arcabouço científico de um homem dedicado ao estudo de várias áreas, da botânica à história, da geografia à engenharia –, Os Sertões foi também o resultado da clareza de um autor que, à vista da vida em Canudos, logo percebeu que aquelas pessoas rudes, castigadas pelas agruras de um Brasil longínquo e esquecidas pelo Estado, não poderiam nunca ser confundidas com conspiradores da realeza.

O jornalista viu de perto a quarta e a quinta expedições contra Canudos, quando se fez terra arrasada do vilarejo. No Rio e em São Paulo, comemorou-se a vitória contra os “subversivos da República”, malgrado os artigos que ele havia escrito. Homem de seu tempo, imbuído das teorias de Darwin e Spencer, Euclides via aqueles sertanejos como uma espécie de “sub-raça”, de uma “terra ignota”, condenada à extinção. A noção causa impacto hoje, e não é de estranhar. Mas o que é preciso ressaltar é que, antes de se entregar ao obscurantismo que a ideologia e a fé cega haviam provocado nos seus

Primeira Leitura, março de 2002

© Almir de Freitas


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Os Sertões

“Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até o esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer (...)”

Maria Hsu