Vale quanto pesa

Alejandro González Iñárritu volta a recorrer a uma narrativa fragmentada para disfarçar as muitas deficiências de 21 Gramas

Depois do sucesso de Amores Perros (2000), o diretor mexicano Alejandro González Iñárritu subiu na vida. Seu filme mais recente, 21 Gramas, dispensa legendas aos norte-americanos e aos votantes do Oscar, com Benicio Del Toro, Sean Penn e Naomi Watts nos papéis centrais. Bom para ele, nem tanto para o cinema. Como seu predecessor – em que no Brasil os cães do título viraram brutos – 21 Gramas é um filme ruim. Ruim demais.

Não há, naturalmente, nenhum problema em Iñárritu e o roteirista Guillermo Arriaga recorrerem de novo a um acidente automobilístico – em Amores Perros para narrar os desdobramentos diferentes nas vidas de três personagens, neste filme para interligar os destinos de outros. Nem por optarem, de novo também, por uma narrativa fragmentada, não-linear, ágil e carregada na crueza das imagens. O dramático – como sempre – está no aparentemente mais simples: o texto e o argumento.

A dupla Iñárritu e Arriaga parece levar a sério, como se fora uma receita, a tese de Umberto Eco sobre Casablanca, segundo a qual o acúmulo de clichês leva ao sublime. Em 21 Gramas, eles existem a granel: uma tragédia de proporções colossais dissolve uma família feliz; um ex-presidiário (Del Toro), que descobriu Jesus e ganhou uma caminhonete aziaga numa rifa, vive uma crise de fé diante da fatalidade; e um transplantado (Penn), obcecado com a origem do coração que lhe salvou a vida, apaixona-se pela mulher do doador – que não é outra senão a sobrevivente da tragédia original (Watts).

Acrescente-se a isso frases mais ou menos como “Preciso descobrir quem eu sou agora!” (Penn, referindo-se ao seu novo órgão), “Jesus me traiu!” (Del Toro, na cadeia), “Quem é você para saber do que preciso, trepando aqui com a mulher do doador do seu coração?” (Watts, em péssimo desempenho), ou, em contrapartida, o beneficiário da doação dizendo a ela que “tem um bom coração”. Sem contar o monólogo final, em que Penn, doente (de novo) e baleado, divaga sobre os 21 gramas que o ser humano perde no momento da morte. “O que ganhamos, o que ganhamos?”, pergunta-se.

Diante disso, a estrutura fragmentada, elíptica do roteiro, jogando pedaços da trama para despertar a curiosidade do espectador, faz até sentido. E não é nem malfeita. Mas nem todo engenho se autojustifica para o bem. Muitas vezes, serve para maquiar defeitos maiores. Sem esse tipo de narrativa, de técnica – ou truque – Iñárritu não teria nada a fornecer além de uma história que se encaixaria bem numa minissérie da Televisa.

E, nesse sentido, aí sim, vale mencionar as semelhanças de 21 Gramas com Amores Perros, filme em que diretor e roteirista se valeram do mesmo expediente. Especialmente para contar o drama da modelo que perde a perna no acidente de carro da ocasião (e depois perde um cão num buraco do assoalho) e na fala – patética como poucas vezes se ouviu num cinema – do sem-teto, senhor dos cachorros de rua, a explicar para a filha por que teve de deixar a família anos antes – guerrilha, clandestinidade, etc., etc.

Tudo muito triste, sem dúvida. A fatalidade é realmente algo assustador, e Iñárritu sabe muito bem disso. Provavelmente é uma obsessão sincera que o move, mas o que está em jogo, num filme, não são as intenções do diretor, mas a sua capacidade de fazer um filme que, não importa os recursos técnicos de que disponha, tenha na sua essência algo que vá além da tragédia de apelo fácil. Os 21 gramas que se perdem na hora da morte podem ser o peso da alma, como se especula. Ou podem ser apenas água.

BRAVO!, fevereiro de 2004
© Almir de Freitas