De volta ao começo

Ubaldo

Há quem afirme que um bom romance se define como tal já nas suas primeiras palavras, numa frase ou parágrafo. Outros não chegam a tanto, mas, em contrapartida, não têm medo de dizer que só a leitura do início,  em alguns casos extremos, já basta, dispensando-se o resto. Não acredito piamente em nenhuma dessas duas hipóteses, mas não há como ignorar o impacto daquele momento em que, ritualísticos, damos início a uma empreitada como leitores. Em seu novo livro, O Albatroz Azul (Nova Fronteira, 240 págs., R$ 39,90), João Ubaldo Ribeiro mostra ter a exata noção dessa importância. O primeiro parágrafo do romance, que chega às livrarias nesta semana e foi tema de reportagem de Cristiane Costa na BRAVO! deste mês, é daqueles que, no mínimo, dão impulso a uma leitura que vale muito a pena.

Sentado na quina da rampa do Largo da Quitanda, as mãos espalmadas nos joelhos, as abas do cha­péu lhe rebuçando o rosto pregueado, Tertuliano Jaburu ouviu o primeiro canto de galo e mirou o céu sem alterar a expressão. Ignora-se o que, nessa calmaria antes do nascer do sol, pensam os gran­des velhos como ele e ninguém lhe perguntaria nada, porque, mesmo que ele se dispusesse a res­ponder, não entenderiam plenamente as respostas e dúvidas mais fundas sobreviriam de imediato, pois é sempre assim, quando se tenta conhecer o que o tempo ainda não autoriza. Ao olhar para o alto, talvez esteja confirmando artigos da sabedo­ria que seus longos anos lhe ministraram, da qual fazem parte segredos impossíveis de serem conta­dos, porquanto não se prestam a isso, mas devem entrar sem palavras na mente e no corpo e apenas o viver lhes dá acesso. Os que têm estudo explicam a claridade e a treva, dão aulas sobre os astros e o firmamento, mas nada compreendem do Universo e da existência, pois bem distinto do explicar é o compreender e quase sempre os dois caminham separados. Que Tertuliano goza de familiaridade com os seres, visíveis e invisíveis, que povoam cada estação do dia e da noite, não sente mais medo do tempo e seu único real desejo é desejar sempre o que Deus deseja para ele, isso se sabe e se respeita, pois é da lei. E seu pensamento é percebido firme como os rochedos e corrediço como as águas.”

Em tempo: em seu blog, o todoprosa, Sérgio Rodrigues coleciona há tempos “começos inesquecíveis” de romances. Nas últimas semanas, o jornalista e escritor vem promovendo uma votação para saber qual é o top dos tops. Vá lá e vote.

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