O ovo da serpente

O Olho Mais Azul, primeiro livro de Toni Morrison, já antecipava nos anos 70 os limites estreitos do politicamente correto

Nem valeria mais a pena questionar, passados dez anos, o Nobel de Literatura concedido à norte-americana Toni Morrison, autora, entre outros, de Song of Solomon, do famoso Amada e, posteriormente, de Paraíso. Já eram mais que conhecidas as idiossincrasias políticas da academia sueca, e era mais do que evidente que o prêmio se devia muito mais ao fato de a escritora ser feminista e negra do que por qualquer mérito literário. Entretanto, seu primeiro romance, O Olho Mais Azul, lançado agora no Brasil, é uma oportunidade de retomar a questão sob a perspectiva do que teria se passado entre o período que separa sua publicação, em 1970, quando se vivia a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, da época da premiação, em 1993, quando a patrulha do politicamente correto, censora e intimidadora, vivia seus dias de glória. Em outras palavras, de como um discurso genuinamente libertário pôde se converter num autoritarismo ditado, supostamente, pelas minorias.

Mais “realista” que seus outros romances, O Olho Mais Azul vai direto ao ponto: exibe a pobreza, a discriminação e as humilhações por que passavam os negros, mulheres sobretudo, ao longo da década de 30, quando o país vivia a ressaca da Grande Depressão. A alternância de narradores – ora uma indefinida terceira pessoa, ora a menina negra Claudia MacTeer – vem bem a calhar. Se a primeira serve a Morrison para dar uma coerência mínima à narrativa, fincada na descrição onisciente – e anônima – das histórias que quer contar, a segunda é sua porta-voz ideal: tratando-se de criança de 9 anos, tem o salvo-conduto – quem vai negar? – para exprimir toda sorte de rancores e ressentimentos contra o mundo.

Desse modo, Claudia pode falar sem cerimônia da sua raiva contra Shirley Temple, a menina loura de Hollywood (mais tarde, convenientemente reacionária), e, por paralelismo, de uma boneca ganha no Natal, “uma Baby Doll grande, de olhos azuis”. Naturalmente, como costuma acontecer, o brinquedo também tem lá seu significado: “Adultos, meninas mais velhas, lojas, revistas, jornais, vitrines – o mundo todo concordava que uma boneca de olhos azuis, cabelo amarelo e pele rosada era o que toda menina mais almejava”. Mais adiante, depois de descrever como desmembrava suas bonecas, afirma: “Eu destruía bonecas brancas”. Nesse ponto, encapsulado nessa personagem, o conflito racial em potencial pode até ser mitigado pela demagogia mais inverossímil em uma criança: “Se algum adulto com o poder para atender os meus desejos me tivesse levado a sério e perguntado o que eu queria, ficaria sabendo que eu não queria ter nada, possuir nenhum objeto. Queria era sentir alguma coisa no dia de Natal”.

Os mais impacientes já teriam motivos para interromper nesse ponto a leitura. Não é o caso. Ainda falta muito, a começar pela figura crucial de Pecola Breedlove, uma menina negra extremamente feia que, aos 12 anos, rompe a barreira da infância ao menstruar, ocasião em que não faltam detalhes. Será ela que – com seu desejo declarado de ter olhos azuis em meio a uma repentina maturidade sexual – encarnará os dois eixos da história: em primeiro lugar, sempre, a humilhação advinda de um padrão de beleza que lhe escapa, representada inicialmente por Maureen Peal, uma “mulata claríssima”, que, numa passagem, insulta Pecola, Claudia e sua irmã um ano mais velha, Frieda: “Eu sou bonita! E vocês são feias! Pretas e feias, pretas retintas. Eu sou bonita!”. Em segundo lugar, virá a descoberta da brutalidade masculina, a começar pela perversidade de Júnior, o protótipo do menino branco mau. Ambos são mais “ricos” que as meninas, mais claros, mais fortes e, não menos importante, insidiosos e traiçoeiros.

Daí por diante, os carrascos trocarão de nome: maridos bêbados e covardes, médicos indiferentes a partos dolorosos, molestadores sexuais de meninas em cada canto e toda uma estirpe de homens truculentos e vis. Às vezes, custa-se a acreditar no que se está lendo. Por exemplo, Elihue (um descendente de uma família que cometera a heresia de tentar se embranquecer), que se ilustrava segundo os ditames masculinos: “Assim, optou por lembrar de Hamlet maltratando Ofélia, mas não do amor de Cristo por Maria Madalena”.

Na prosa de O Olho Mais Azul, louvada por seus defensores por ser não-linear (como se isso fosse um valor positivo em si mesmo), o que se evidencia mesmo é um amontoado de episódios desagradáveis, feitos sob medida para o que a autora, por trás de seus estratégicos narradores, quer alardear. Em seu proselitismo simplório, Morrison não consegue superar os limites dos estereótipos em uma sociedade que é, de fato, racista, machista e excludente – por isso mesmo, maior é a limitação da autora. A realidade existe, apenas seus personagens são incapazes de iluminar ou transcender o que está oculto na marcha daqueles oprimidos de toda sorte que povoam e povoaram, de forma sombria, mas brilhante, a história da literatura moderna – de Émile Zola a Jean Genet, de Victor Hugo a John Steinbeck.

Mas não basta essa constatação. O Olho Mais Azul é mais que um livro ruim. O que depreende dele é que, ao insistir no discurso ostensivo da vítima, Morrison opta pelo caminho mais fácil, apelando a um sentimento de culpa coletivo – sentimento esse que, para a fortuna do seu destino na literatura mundial, se consolidou nos anos 1980, mais ou menos no mesmo período em que, por paradoxal que possa parecer, os norte-americanos conferiam mandatos e uma supremacia esmagadora aos republicanos. Em ambientes como esses, qualquer formulação intelectual e artística mais fundamentada são artigos de pouco valor.

É assim que a democrata Morrison pôde, nos anos que se seguem, se investir de uma autoridade que não admite contestação. Quem, nessas circunstâncias, há de impor uma restrição, pequenina que seja, a tais nobres causas? Se alguém o fizer, nadando contra a corrente e desafiando o consenso fácil, é imediatamente encaminhado a uma espécie de cadafalso moral, numa espécie de macarthismo às avessas ou de puritanismo de sinal invertido. Diante desse mundo que a escritora arquiteta – um mundo de doenças e injustiça social, de famílias desagregadas, violência e morte – tudo é compreensível. Até o ódio e o sentimento de vingança, gestados no ovo da serpente das boas intenções.

“Mas o desmembramento de bonecas”, diz Morrison-Claudia, “não era o verdadeiro horror. O que realmente aterrorizava era a transferência dos mesmos impulsos para garotinhas brancas.” Contra isso, se apressa em explicar: “O melhor esconderijo foi o amor. Assim, conversão do sadismo original em ódio fabricado, em amor fraudulento. Um pequeno passo até Shirley Temple. Muito mais tarde aprendi a adorá-la, exatamente como aprendi a me deliciar com limpeza, sabendo, mesmo enquanto aprendia, que mudar foi adaptar sem melhorar”.

Não se pode, é forçoso admitir, acusar Toni Morrison de dissimulação.

BRAVO!, janeiro de 2003