Um rio interminável

A semana, que começou com procrastinação (aqui), termina com este Arte Poética, de Jorge Luis Borges, declamado pelo próprio. Entre um e outro, cinco dias e uma ideia sobre o tempo. A tradução na íntegra vai abaixo.

Mirar o rio feito de tempo e água
e recordar que o tempo é outro rio,
saber que nos perdemos como o rio
e que os rostos passam como a água.

Sentir que a vigília é um outro sonho
que sonha não sonhar, e que a morte
que teme nossa carne é essa morte
de cada noite, que se chama sonho.

Ver no dia ou no ano um símbolo
dos dias do homem e de seus anos,
converter o desrespeito dos anos
numa música, num rumor e um símbolo.

Ver na morte o sonho, no pôr-do-sol
um triste ouro, assim é a poesia
que é imortal e pobre. A poesia
volta como a aurora e o pôr-do-sol.

Às vezes numas tardes uma cara
nos mira lá do fundo de um espelho;
a arte deve ser como esse espelho
que nos revela nossa própria cara.

Contam que Ulisses, farto de prodígios,
chorou de amor ao divisar sua Ítaca
verde e humilde. A arte é essa Ítaca
de verde eternidade, não prodígios.

Também é como o rio interminável
que passa e fica e é cristal de um mesmo
Heráclito inconstante, que é o mesmo
e é outro, como o rio interminável.

8 Replies to “Um rio interminável”

  1. […] Hoje é dia de Jorge Luis Borges, que nasceu no dia 24 de agosto de 1899 — o que metade do planeta certa e felizmente já sabe pelo doodle do Google. Vira e mexe este blog volta a alguns assuntos e autores, o argentino entre eles, como (com alguma pretensão) um labirinto que conduz sempre aos mesmos lugares — o que, dito assim, não parece ser coisa ruim. Para quem se animar do mesmo modo, segue uma coleção de 26 textos lidos pelo próprio, postados no SoundCloud por Pablo Stafforini. A faixa 23 é altamente recomendada. Não à toa, já apareceu por aqui. […]

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