Sobre malandros e manés

Adoramos pensar que brasileiro é esperto e safo, mas a vida lá fora está longe de ser uma letra de samba

Brasileiro se acha muito malandro, mas viajar mostra às vezes que a vida lá fora está longe de ser uma letra de samba. Em Lisboa, certa vez, um sujeito de um grupo em que eu estava quis crescer pra cima do motorista do táxi: “Aqui todo mundo dá nó em pingo d’água”. Ao que o chofer, encarnado o desdém mal-humorado de um Saramago, replicou em ótimo português: “O que o senhor está a dizer não me diz nenhum respeito”.

Essa nossa mitologia do ser esperto e safo tem muito de consumo interno, e não raro os manés somos nós. Tente, por exemplo, negociar com um vendedor na China. Ele começará cobrando dez vezes mais pela mercadoria, e você terá de dar o sangue pra não ser esfolado. Se conseguir, restará uma sensação de que, de algum modo, você foi induzido a achar que se saiu bem.

Somos juniores também no esporte da pechincha do mundo árabe. Dubai e Abu Dhabi são menos perigosos, já que os vendedores são imigrantes – um exército que se bate por salário, não por honra. Enquanto isso, a “classe média” local vive confortavelmente de royalties do petróleo: se a religião permitisse, poderiam passar o dia no boteco bebendo cerveja e jogando sinuca. E os malandros somos nós…

Nem países de primeiríssimo mundo são zonas seguras. Uma vez, uns islandeses me alugaram um carro com os dois pneus traseiros carcomidos por dentro – tive sorte de não tê-los furados no meio de um deserto de neve. Quando aconteceu, perto da pequena Höfn, fui socorrido pelo dono de uma locadora, um santo com cara de viking que fez os malandros de Reykjavík enviarem pneus novos, por avião.

Naquele dia, fui ao glacial Vatnajökull com carro emprestado pelo viking, que ganhou um dia de trabalho. Os salafrários pagaram tudo. Manés.

Viagem e Turismo, setembro de 2017
© Almir de Freitas