O filme O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas mostra a solidariedade bruta nas periferias
“Cativar é criar laços”, disse a raposa à criança famosa de Saint-Exupéry. Dita assim, solta, fora de contexto, a frase choca em sua singeleza se confrontada com narrativas de mundos nada fantasiosos, onde estão os pesadelos das grandes metrópoles do Brasil: a violência, a miséria e o racismo escancarado das periferias. Em O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas, documentário de Paulo Caldas e Marcelo Luna que fez sucesso no Festival de Veneza deste ano e que estreia no Brasil neste mês, a periferia é Camaragibe, cidade-dormitório da Grande Recife. Lá, Pequeno Príncipe é o apelido de Hélio José Muniz Filho, 21 anos, também conhecido como Helinho, condenado a 99 anos de prisão e acusado de ter matado pelo menos 44 pessoas. Todas as suas vítimas eram almas sebosas – “gente que não serve para nada, ladrão, assaltante safado, traficante”, explicam outros justiceiros. É nesse lugar que surgem – na gíria, na música e nas diversas atitudes diante da brutalidade do dia-a-dia – uma identidade própria e laços de uma solidariedade possível, ainda que em meio a uma guerra aberta.
Ao lado do justiceiro Helinho, compõe o eixo do filme José Alexandre Santos de Oliveira, 27 anos, o Garnizé. Também morador de Camaragibe, Garnizé é baterista do grupo de rap Faces da Periferia, trabalha com a educação de crianças carentes e, em vez de mortos, traz nas costas tatuagens de Malcolm X, Martin Luther King e Che Guevara – o que é mais que uma pista para descobrir qual é seu discurso. Mas vai errar feio quem acha que já sabe o que ele diz e, com base no contraste evidente de Garnizé com Helinho, procurar em O Rap… a moral que se encontra em templos e a estética que se insistiu em buscar no cinema nacional. Caldas e Luna não se apoiam (porque isso não interessa aqui) na assertiva de que é possível escapar do destino certo de ser bandido pelo voluntarismo, tampouco romantizam a miséria, como se ela fosse possibilidade libertária. Sem dúvida diferentes, e muito, Helinho e Garnizé não são retratados ostensivamente como opostos: eles são também, e essencialmente, aliados – tanto quanto se pode ser em um mundo complexo como todos os outros, longe das simplificações de pastores e tantos cineastas.
Em cenários nada bonitos, muito menos românticos, vê-se o que há de mais desconhecido na periferia e o que mais pode ser assustador: na lógica da exclusão apresentada em O Rap…, Garnizé identifica-se mais com Helinho do que com alguém que, mesmo sendo músico, caridoso e obediente à lei, esteja (para usar uma expressão dos Racionais MC’s) do lado de lá dos “muros”: este outro não é pobre, não é negro, nem está no meio do fogo cruzado das almas sebosas e da polícia. Assim, o documentário de Caldas e Luna toca o realismo extremo ao enxergar a pluralidade e as consequências de uma sociedade que é – com todas as letras – injusta: das gangues às bandas, dos justiceiros apoiados pelos moradores ao hip-hop tornado brasileiro, predomina a identidade dos que, conhecidos como marginais, deixam essa condição ao criar um mundo próprio, com regras próprias e códigos de expressão e ação particulares. Um deles é o rap.
Embora multicultural na absorção de valores e ritmos, apesar de ser alternativa real à banalização da violência, a banda de Garnizé segue encerrada onde o Estado, inoperante, não alcança. Ao som de pandeiros, canta o rapper do Faces da Periferia: “A face do subúrbio não dá cara a tapa, e se bater, tenha certeza, vai ser revidado”. Em outra cena, que pode ser considerada síntese de O Rap…, a periferia do Recife é filmada em uma tomada aérea, com os prédios do Centro da cidade ao longe. Ao fundo, o rap dos Racionais MC’s manda um abraço aos moradores de dezenas de bairros violentos das grandes cidades de vários Estados: São Mateus, Capelinha, Jardim Calux, P-Norte, P-Sul, Rádio Favela, Mangueira, Borel, etc. É como se lá, num lugar espalhado pelo país, existissem fronteiras de uma nação de excluídos, de “manos”, em oposição à excludente, de “caras”. Quem são? Não é dito. Talvez os políticos, talvez simplesmente os que fecham os vidros dos carros nos semáforos, evitam as ruas escuras e só lembram, em sua geografia particular, dos Jardins, de Copacabana e do Lago Sul. Como já disse, bonito não é: numa guerra hobbesiana não se salva ninguém.
Essa solidariedade crua mostrada em O Rap… pode ser desagradável, justamente por ser rara em cinema, mas não é incompatível com as imagens (que também estão nesse documentário) mais conhecidas da periferia – as chacinas, o futebol no domingo, as penitenciárias, o pagode com as mulheres. Apenas avança mais. Sabe-se que, nesse mundo, bandido confunde-se com justiceiro, que justiceiro se investe do papel de polícia e que polícia, às vezes, parece ser bandido. A diferença aqui é que, na identidade que se constrói entre Garnizé e Helinho, revela-se uma realidade maior e mais esclarecedora que aquela martelada pela crônica policial diária e pelas estatísticas.
É verdade que o cenário e os personagens podem ajudar qualquer um que ligue uma câmera a provocar impacto, mas isso não seria suficiente para fazer um bom documentário. O êxito de Caldas e Luna em O Rap… deve-se principalmente ao roteiro que foi sendo construído durante a filmagem dos depoimentos, à direção e à edição final, que livraram o filme, principalmente, de qualquer pretensão de explicar – condenando ou glorificando – uma realidade que, como outras, é contraditória e não se limita à visão de quem, de fora, a enquadra em esquemas fixos.
BRAVO!, novembro de 2000
© Almir de Freitas