The Pillow Book - 2


(continuação)


Decupagem / Desenvolvimento


Primeira seqüência analisada: “transação financeira” entre os amantes Nagiko e Jerome num restaurante. (tempo no vídeo: 0:09:00)


Uma câmera sobre trilho percorre o interior de um restaurante. Por sobre a imagem, sobressai uma outra recortada e projetada, como se fosse uma nova tela sobre a primeira, onde aparece a palma de uma mão sendo escrita. Uma mão segura pela mão de outro. A música de fundo é Blonde (E.Daho e Ch.Rose, executada por Guesch Patti, gravação de 1995), que diz: “desperte-a nele, desaloje o homem nele, um anjo voa, bom, enrola-se ela nele, esconde-se ela nele, um homem muda, estranho, perfeita mistura/desordem, ele troca as asas nela, um homem sombrio muda, um anjo bomba, um anjo loiro, doidinho, doce, perfeita mistura/desordem, sexo de um anjo”.


A letra da música remete à criação de Adão e Eva. As asas como costelas. Essa relação será tratada com mais atenção adiante, mas é importante identificar que já há aqui, inegavelmente, a perfeita alusão à criação e fusão homem/mulher. É interessante notar que o diretor escolhe mostrar que o elo entre os dois passa a existir através de uma “transação financeira”, como narra a personagem feminina. O casal, tal como conhecemos hoje, fruto de uma imposição social, da necessidade de constituição de um núcleo econômico e financeiro. E colado a esta conceituação há o desejo de subversão deste princípio. Quem abaliza a negociação, quem paga a conta, é a mulher e não o homem, apontado desde os primórdios como o responsável pela ordem econômica e o sustento de um lar. Há ainda, neste fragmento, uma referência à própria criação artística. Mais diretamente à pintura. Como se a seqüência servisse para lembrar também que a pintura surgiu como uma mercadoria, como algo a ser vendido ou a ser feito sob encomenda.


“A obra corrente _ sobretudo a partir do século XVII _ era uma obra produzida mais ou menos cinicamente: ou seja, os valores que exprimiam nominalmente tinham menos significado para o pintor que o fato de haver conseguido uma encomenda, ou vender a sua produção.”4 Nagiko, Jerome, os dois, seriam vistos aí também como obras de arte. Assim se estabelece uma crítica irônica e sutil à forma como a sociedade é articulada pela ordem do dinheiro. “O dinheiro é a garantia e a chave de toda capacidade humana”5, diz a publicidade. Nagiko e Jerome não têm dinheiro, mas conseguem se comprometer a pagar a conta do restaurante deixando a xerox de uma mão assinada. A mão de Nagiko vira o cheque avulso de Jerome. Vamos à narração, na voz da personagem Nagiko, que se sobrepõe às imagens descritas acima:


“Nossa primeira transação (palavra que lembra transa/sexo) foi estritamente financeira. Ele queria pagar a conta, mas não tinha dinheiro. Ofereceu-se para escrever um cheque, mas não tinha talão de cheque. Dei voluntariamente (I volunteered) a palma da minha mão”


Note que a palavra usada pela personagem é volunteered. O que podemos aprender dessa fala? Que ela foi voluntária para uma operação. Que não foi um ato inconsciente (no sentido superficial do termo) ou involuntário. Foi um ato deliberado, planejado, aceito e assumido. Jerome (embora ainda não apareça em cena, você sabe que é ele pela narração de Nagiko) escreve, assina e carimba de vermelho (essa cor não deve ter sido escolhida ao acaso) a mão dela. Nesse momento, a câmera que vinha percorrendo o restaurante, onde o espectador já tinha sido induzido a pensar que eles estavam, e mesmo já os procuravam, chega até a mesa/local dos dois. Em espécies de tatames, ou, em camas, como queiram, os dois se encontram de roupas claras, ela de branco, numa túnica que mais parece roupa de hospital. A roupa dos dois e o fato de estarem quase deitados podem lembrar um leito de hospital ou um leito nupcial. Corta para os dois já no balcão do bar. A seqüência, sem apelar hora alguma para os clichês já gastos de cenas de casamento, lembra que ali está sendo selada uma união. Um homem de terno, possivelmente o chefe do restaurante, numa atitude muito respeitável, que lembra trejeitos de um padre, digamos, coloca a mão de Nagiko numa copiadora de xerox, localizada atrás do balcão. A cópia da mão, assim como a própria mão anteriormente, é mostrada em uma das muitas “janelas”, “colagens”, “molduras”, “enquadramentos”, frames propostos simultaneamente pelo texto fílmico de Greenaway.


“A justaposição de fotografias desemboca num tempo passado, paralelo ao da evolução do filme, criando uma forma de terceira dimensão, plasmada entre uma e outra seqüência. Ao representar o processo de edição por meio de colagens, Greenaway parece imaginar as soluções alternativas que colocou em prática graças às novas tecnologias de pós-produção.”6


Todo o filme, assim como boa parte da obra de Greenaway, recorre a essa forma de “descontinuidade do espaço narrativo por meio da edição”7. Os planos são quase sempre justapostos e em O livro de cabeceira, de uma forma ainda mais exacerbada, as fotografias às quais se refere o texto acima são mesmo páginas de livros sobrepostas. “Greenaway parece conceber a cinematografia como uma sucessão de planos imóveis, muitas de suas tomadas suspendem a lógica temporal do desenvolvimento narrativo”8. O filme/livro tendo a sua narrativa construída num tempo não linear, como em O jogo de amarelinha, de Julio Cortázar. A edição feita com planos imóveis e móveis. Planos imóveis, com coisas que se mexem em seu interior, ou projetados/plasmados a planos imóveis ou que se mexem por detrás. O processo de construção, leia-se edição, cinematográfica de Greenaway será analisado mais adiante.


Voltando à seqüência da xerox, a cópia é pega, levantada e analisada no alto, exatamente como os médicos fazem/ou faziam para ver uma radiografia, sempre virada para uma iluminação qualquer a fim de possibilitar a sua visibilidade. A palma da mão de Nagiko escrita representa aí uma série de coisas. Faz alusão, por exemplo, à evolução tecnológica que vem possibilitando o aperfeiçoamento da coleta de registros, principalmente, textuais. A seqüência é uma das mais belas e bem resolvidas do filme dada a amplitude de significações que pode suscitar. Podemos relacionar a cena à descoberta do raio X. Primeiro acesso ao interior do corpo humano, o raio X, assim como o cinema, surgiu a partir dos desdobramentos dos estudos e aproveitamentos da luz, força natural de origem desconhecida.


Conforme analisado no curso Cultura visual médica: a construção tecnológica do corpo humano, as imagens de mão ficaram muito comuns nessa época. Era corriqueiro, por volta de 1890, se mandar um raio X da mão para alguém como cartão postal _ novidade criada na mesma época do raio X e que também é presente e recorrente no filme em questão. Uma mão radiografada com uma aliança mandada para alguém significava o enlace dessa pessoa. Assim era possível não só avisar, como também constatar que alguém havia casado. A radiografia virava uma espécie de prova.


A xerox da mão de Nagiko também funciona como uma prova no filme. Como uma não, como várias. Prova do amor entre os dois. Prova de que a conta do restaurante, entendida aí possivelmente como uma dívida muito mais ampla, será paga. Prova da evolução tecnológica. Prova de que a pintura e a escrita agora já podem ser reproduzidas e terem seus acessos facilitados. E, principalmente, prova de que o ser humano está recobrando de alguma forma, através de processos cada vez mais modernos de impressão e registros humanos, quem sabe, a sua própria individualidade. “A aproximação ao corpo e à sexualidade _ carne vulnerável _ que seus filmes (de Greenaway) propõem revelam um desejo profundo de resgatar a identidade do indivíduo”9.


O raio X, quando criado, acabou provocando um apagamento das inscrições de raça, sexo, identidade (mão) e classe social. Virando um meio para a tentativa de apagamento de qualquer possibilidade de diferenciação. Quando surgiram os primeiros filmes de raio X, a fluoroscopia, eles funcionaram como uma tentativa de trazer vida à imagem de morte. A morte, nesse caso, inscrita na imagem estética do raio X. O registro da morte ganha movimento através da fluoroscopia. Raio X e xerox podem ser comparados desta forma no filme em questão.


Outra questão implícita nesta seqüência é a da reprodução, que isolou uma parte de Nagiko. A mão de Nagiko, assim como o filme _ o processo de contar uma história no cinema _, são formas de reprodução. O cinema como registro de uma realidade, uma reprodução mimética. A imagem cinematográfica como uma vista que foi reproduzida. “Os processos de reprodução são usados política e comercialmente para disfarçar ou negar o que a sua existência torna possível.”10 Como discute, em toda obra, as transformações e os destinos da arte, em especial da pintura, diante dos avanços tecnológicos ou mesmo técnicos, Greenaway parece apontar aqui para as facilidades criadas a partir do invento da reprografia, nos remetendo a algumas questões de ordem sociais, econômicas e políticas.


Lembremos também da reprodução, como reprodução sexual. O casamento como meio de reprodução da espécie, de formação do núcleo familiar. Nagiko e Jerome aguardam a saída da xerox como se aguardassem mesmo a saída, ou chegada, de um filho. A cara dos personagens é de total regozijo. “Enfim, se o dispositivo de aliança se articula fortemente com a economia devido ao papel que pode desempenhar na transmissão ou na circulação das riquezas, o dispositivo de sexualidade se liga à economia através de articulações numerosas e sutis, sendo o corpo a principal _ corpo que produz e consome. Numa palavra, o dispositivo de aliança, está ordenado para uma homeostase do corpo social, a qual é sua função manter; daí seu vínculo privilegiado com o direito; daí, também, o fato de o momento decisivo, para ele, ser a ‘reprodução’”.11 “No processo de histerização da mulher, o ‘sexo’ foi definido de três maneiras: como algo que pertence em comum ao homem e à mulher; ou como o que pertence ao homem por excelência e, portanto, faz falta à mulher; mas, ainda, como o que constitui, por si só, o corpo da mulher, ordenando-o inteiramente pelos efeitos destas mesmas funções de reprodução e pertubando-o continuamente pelos efeitos destas mesmas funções...”12


Temos ainda que analisar a questão da reprodução nas artes também citada no filme. “O que os modernos processos de reprodução fizeram foi destruir a autoridade da arte e subtraí-la _ ou melhor, fixar, as suas imagens, a fim de as reproduzir.”13 “A arte do passado já não existe tal como existiu outrora. A sua autoridade perdeu-se. Surgiu, em seu lugar, uma linguagem de imagens.”14 “Na era das reproduções de arte, o significado das obras originais já não está ligado a estas.”15 “A singularidade do original está em que, agora, ele é o original de uma reprodução. O que nos impressiona não é já o que a imagem mostra, por ser único; o seu significado primeiro já não se encontra no que nos diz ser, mas naquilo que é.”16


Greenaway parece nos lembrar que o que vemos na tela, assim como a mão xerocada, é uma reprodução. Ele diz: “filmes são (...) artefatos artificiais. Eles não são janelas no mundo, eles não são reconstruções do mundo”17. A mão de Nagiko, Nagiko e o próprio filme são reproduções. “Uma reprodução, além de fazer as suas próprias referências à imagem do original, torna-se, por sua vez, o ponto de referência de outras imagens.”18 E Greenaway faz referências a outras imagens e textos, a toda hora, em O livro de cabeceira.


“Referir-se à obra pictória de Greenaway supõe uma dupla proposta: enfocar a ordenação plástica da imagem, assim como adentrar-se na desarticulação do vocabulário cinematográfico.”19 Em O livro de cabeceira a palavra é apresentada o tempo quase todo como imagem visual. Como no quadro de Magritte, A chave dos sonhos, que serve de ponto de discussão no livro Modos de ver, organizado por John Berger, Greenaway também quer subverter a ordem natural das coisas. Narrando por vezes uma coisa e mostrando outra. Só que aqui, ele de fato mistura, com mais intensidade as duas/três/quatro... coisas evocadas.


Segunda seqüência analisada: A retirada da pele escrita do corpo de Jerome para transformação em livro. (tempo no vídeo: 0:37:08)


Jerome morre, seu corpo traz o sexto livro, O livro dos amantes, escrito por Nagiko. Jerome é enterrado. O editor, com quem Jerome se envolveu amorosamente, quando sabe da sua morte, resolve roubar seu corpo e lhe retirar a pele para fazer um livro com ela. A cena que interessa aqui é a da dissecação do corpo, do corte da pele de Jerome. Roubado do cemitério, o corpo de Jerome chega embrulhado a uma sala. O corpo é colocado numa mesa grande. Há na sala homens e mulheres vestidos como enfermeiros e médicos. O editor é ajudado a vestir ao fundo uma espécie de avental de cirurgião. O corpo de Jerome está enrolado em papéis. Primeiro num papel de embrulho e depois num papel fino de diversas tonalidades de azul.


A câmera vai acompanhar o desembrulhar do corpo de Jerome, descendo da altura do rosto até o sexo, enquanto imagens sobrepostas vão mostrando objetos de diferentes tonalidades de azul, flores, folhas, relacionados ao papel, até chegar ao próprio papel azul. O papel que envolve Jerome parece mesmo folhas de uma planta. A sensação que passa é a de que ele estaria desabrochando de dentro de uma planta, ou que ele seria a própria planta, que vai virar papel. Papel de livro. Seu sexo não será mostrado. Uma imagem/moldura projetada por cima tapará o sexo. Um corte mostrará logo em seguida à chegada da câmera ao sexo, o olhar do editor nessa direção. O sexo, como a parte onde reside o maior desejo analítico num desmembramento, será apenas sugerido nesta seqüência. Talvez, para lembrar como fazia o cinema clássico narrativo. Mãos começarão a traçar linhas no seu tórax até o enquadramento do seu corpo na vertical tendo ao lado um espelho. O espetáculo está pronto. O espectador assistirá a dissecação de dois ângulos diferentes graças ao recurso do espelho. Mais uma vez a utilização de um recurso tradicional do cinema clássico narrativo. O editor aparece agora na beira da mesa para dissecá-lo. A câmera acompanhará, então, as incisões feitas por um objeto de corte, que lembra mais uma caneta e/ou uma ferramenta de corte de madeira, uma espátula, ou algo assim, do que um bisturi de fato. As relações com a medicina, no entanto, estão todas presentes. O corpo mais uma vez como espetáculo, tanto no cinema como na medicina. A arquitetura da sala de anatomia, em forma de auditório, escura, com iluminação pontual, focada no centro. A aula de anatomia como espetáculo. Tudo isso é representado e lembrado nessa seqüência.


É como se o filme quisesse nos lembrar de que o conhecimento do homem, do seu corpo, sua composição, seu metabolismo, seu movimento foi dado, construído, transmitido assim, por todo século, apenas por duas áreas: medicina e artes visuais, se destacando aí o cinema. E que a popularização da linguagem médica veio através do próprio cinema. A sobreposição entre cinema e medicina, entre olhar anatômico e olhar cinematográfico, e a relação epistemológica entre o olhar cinematográfico e o olhar da anatomia estão referenciadas nesta seqüência.


Além de toda essa relação estabelecida, é bom lembrar que, no passado, nos primórdios da medicina, alguns médicos tinham necessidade de escrever o registro das impressões humanas e, por vezes, riscavam o corpo da pessoa com giz colorido, demarcando regiões, para eles, doentias. A necessidade de registro expressa atinge nessa seqüência um ponto alto. O corpo de Jerome está todo escrito. Está repleto de registro. Jerome é um registro. É um livro, um texto enfim. E como tal será encadernado.


A encadernação do corpo de Jerome é apresentada em diversos fragmentos, que vão aumentando em número na tela e mostram as etapas sucessivas de criação artesanal de um livro. Os cortes e suturas do papel. As tinturas, as colagens, os recortes, os amarrados. As cenas apresentam quase que didaticamente como é feito um livro. E o espectador é levado a pensar também nos procedimentos de produção de um filme, daquele filme. Nos seus “takes”, enquadramentos, cortes, montagens,... O resto de Jerome é jogado fora e o editor vai abrir, lamber, cheirar e se enrolar na pele costurada de Jerome, no livro “Jerome”.


Por todo o filme, o corpo é apresentado como um texto a ser lido, como um livro datado de inscrições culturais, de registros. Assim como o corpo é visto também como a expressão de uma linguagem, como a transcrição do próprio ser, como o criador de uma linguagem. “Ele é feito/inventado de forma entrelaçada às palavras, ele mesmo se escreve, percorrendo/perambulando através do mundo, que se mistura às semelhanças das coisas.”20 O que o pai de Nagiko escreve no seu rosto a cada aniversário nada mais é do que isso, o registro de suas heranças culturais, do que ela representa. Ele sempre assina na sua nuca, como se assinasse a criação da sua obra. Enquanto escreve há sempre uma narração das partes do corpo humano criadas. O sexo sempre é lembrado por último e representado por uma pintura nos lábios de Nagiko. Há aqui também uma analogia com a idéia de que o homem é criação de Deus, foi feito/esculpido por Deus e de que veio do barro. Logo nas primeiras vezes que o pai de Nagiko lhe marca com os ideogramas isso é dito. “Quando Deus fez o primeiro modelo do homem em barro...”, vai contando o pai.


O corpo em O livro de cabeceira virá suporte para a escrita, à literatura. Ou melhor, é a própria escrita, palavra e literatura. Numa analogia entre corpo humano e corpo fílmico _ tomando o filme também como um corpo a ser dissecado _ poderíamos chegar à conclusão de que Greenaway transforma a sua própria película em um livro. O encadeamento das imagens como um texto a ser lido. Um texto composto por imagens. Um corpo com registros escritos através de imagens. Greenaway vai buscar na bela, ancestral e artística escrita japonesa os símbolos/imagens capazes de darem a conotação certa ao que quer dizer. As palavras, antes de tudo, também são originadas em imagens.


Numa das muitas passagens do filme, Nagiko, na busca por diferentes caligrafias e/ou calígrafos, recorre a um homem que escreve numa caligrafia primitiva, utilizando mesmo formas artesanais e artísticas. Quando ela indaga o que ele acaba de escrever sobre seu corpo, ele se nega a responder. “Descubra você”, diz ele. Chocada, ela pergunta como vai poder fazer isso. “Há culturas que não permitem imagens. Algumas não deveriam permitir textos”, responde ele, se negando a traduzir em palavras o que acaba de desenhar no corpo dela. É o elogio maior à imagem, à celebração total da volta da palavra escrita a um entendimento visual, como nas inscrições das cavernas.


A relação Ocidente / Oriente também está presente no filme. Nagiko passa pelo que chama de incêndios. São dois. Segundo ela, um a tira do Japão, outro a traz de volta. O que a tira do Japão a leva ao encontro do Ocidente e a Jerome, o estrangeiro que vai fazê-la descobrir que pode ser pena e não apenas papel. As análises aqui são por demais extensas. Vão desde a vontade que ela tinha de falar o inglês perfeito, apesar da dificuldade que tem sendo nissei, até seu trabalho como modelo e a sua tentativa de grafar os ideogramas japoneses numa rústica máquina de escrever. Nagiko chega a colar no corpo a folha com os ideogramas batidos à máquina, num aniversário seu. A máquina acaba num vaso sanitário. Toda a seqüência é filmada em preto e branco, talvez, para demonstrar que o processo da datilografia é monótono e homogêneo. “A datilografia trouxe para o mundo dos negócios uma nova dimensão do uniforme, do homogêneo e do contínuo...”21

Mas o importante aqui é fazer a analogia entre dissecação de um corpo e decupagem de um filme. O termo decupagem, vindo do francês, teria origem no ato de dissecar um cadáver. O processo de corte e sutura, presente na edição de um filme, é o mesmo pelo qual a pele de Jerome irá passar. O texto fílmico transformado num corpo. A analogia ainda é maior, porque a pele de Jerome vai virar livro, assim como o filme de Greenaway foi transformado em um. É a inversão total. “Sempre fiquei muito decepcionado por este formidável meio (o cinema) de captação de imagens sempre ter sua origem em um roteiro”.22 “Ainda sinto um desejo profundo de contar histórias, mas quero fazer isso de forma visual”.23 Ao invés de seguir um roteiro tradicional ou adaptar uma obra literária um filme, Greenaway quer transformar a sua história visual _ se utilizando da exploração das imagens gráficas das letras e palavras, dos ideogramas _ em um livro a ser lido como qualquer outro. Ele quer o inverso da equação que se apresenta hoje. Não só quer o inverso, como parece acreditar mesmo que seja essa a ordem natural das coisas: primeiro, imagem; depois, palavra.


A análise do nu e do corpo humano em O livro de cabeceira:


O nu está presente em toda obra de Greenaway. Em O livro de cabeceira ele vira condição básica para que os corpos possam virar papéis, locais de registros impressos. Mas vamos destacar apenas uma seqüência de nu de Nagiko e Jerome. Quando os dois se colocam juntos de pé, se viram de frente e depois ele a pega no colo. E mais tarde, quando ela com a oração do Pai Nosso escrita em inglês e latim por sobre o corpo aparece crucificada sobre livros de arte chinesa.


Na primeira cena em que os dois estão de pé e Nagiko inclina a cabeça para o lado dele há uma identificação com as imagens de quadros renascentistas, de Adão e Eva. “Os primeiros nus da tradição representavam Adão e Eva.”24 A música durante toda a seqüência mais uma vez é Blond. Os personagens, nos filmes de Greenaway, “nunca se comportam como seres psicológicos mas representam arquétipos”25 . No caso de Nagiko e Jerome, a comparação com Adão e Eva é imediata.


Se o nu “é uma forma de vestuário”26 e “o nu é uma forma de arte”27, em O livro de cabeceira o nu é a própria arte. Os corpos de Nagiko e Jerome, além de livros, são vistos e apresentados como obras de arte. E há algumas referências de como o nu foi retratado na pintura, com o passar dos tempos. Em especial, o nu feminino. Na hora em que a câmera mostra Nagiko de braços abertos por sobre livros de arte, com o corpo coberto com o Pai Nosso, o ápice fica por conta da revelação/tapada do sexo, sem pelos, dela. A mão posta sobre a genitália como nos quadros de santos e anjos. “A paixão sexual feminina tem de ser minimizada para que o espectador possa sentir que tem o monopólio da paixão. As mulheres existem para alimentar um apetite e não para terem apetites seus”28. Aqui, como para lembrar que “a vergonha torna-se uma espécie de exibição”29, o filme resgata mais essa caracterização que perdurou nas representações artísticas de nus femininos.


Outras considerações isoladas de imagens e seqüências:


“Como eu posso ter prazer escrevendo em você? Você é que tem que escrever em mim”, responde Nagiko à investida de Jerome lhe entregar a caneta para que ela escreva no seu corpo. “Use meu corpo como páginas do seu livro”, diz ele. “Trate-me como a página de um livro”, aparece mais tarde. Os amantes pedem para serem lidos, interpretados, desvendados. Assim como o próprio filme. Leia-me é o que está impresso a toda hora na tela de O livro de cabeceira. Decifra-me, ou te devoro, quase diz o filme, como a esfinge cifra aos que pretendem ingressar em seu reino.


A água/tinta que escorre do corpo de Nagiko no ralo da banheira se vai como o sangue em Psicose de Hitchcock. O plano não é o mesmo, mas a associação é inevitável. Ao invés de sangue, a tinta é azul. O fogo em O livro de cabeceira também, às vezes, é azul. Sangue e fogo azuis, ao invés de vermelhos. Mais uma volta ao básico, ao ponto inicial, à forma ainda mais pura.


O livro que inspirou Greenaway, escrito no século 10, por Sei Shonagon, uma cortesã da dinastia imperial japonesa Heian, é uma coleção de reminiscências da sua vida. Como um diário, lista as coisas que ela gosta, cita livros, passagens literárias e narra aventuras amorosas. Em determinadas horas, Greenaway insere a própria personagem de Shonagon para narrar, falando que conheceu, por exemplo, os maiores prazeres da vida _ dos livros e do sexo _ ou apenas classificando coisas e fazendo comparações sobre o que gosta. É assim, por exemplo, que de uma maneira bem simples, Greenaway vai comparando partes do corpo humano a objetos, como uma concha a um umbigo, a barriga a pratos virados para baixo, pepinos a pênis. “A vista é aquilo que estabelece o nosso lugar no mundo que nos rodeia; explicamos o mundo com palavras, mas as palavras nunca podem anular o facto de estarmos rodeados por ele”30. Mais uma vez, Greenaway, com essa simples lista de comparações quer nos surpreender. Quer nos fazer ver o que se diz e não o que de fato se vê. Fazendo com que duvidemos da relação entre palavras e coisas. Tendo o olhar crítico sobre as classificações que a sociedade impinge e perpetua como forma de organizar o “inorganizável” caos do mundo. A relação com o quadro de Magritte, A chave dos sonhos, se estabelece novamente e mais, amplamente, com o próprio movimento surrealista da pintura e do cinema, que sempre tentou abolir as formas convencionais de analogias.


(continua)



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